O calvário de quem depende de ônibus para ir e vir no DF
Passageiros enfrentam precariedade causada por superlotação, linhas escassas e benefícios falhos. Saiba o que os buritizáveis têm a dizer
atualizado
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O sol ainda nem raiou quando o estudante Leandro Victor de Araújo, 27 anos, inicia o teste físico e mental que inaugura todos os seus dias, de segunda a sexta. Às 5h, ele sai de casa, no Gama, rumo ao campus do Instituto Federal de Brasília (IFB) em Planaltina, a 53km dali, onde cursa agroecologia. No trajeto, pega três ônibus, em duas horas e 40 minutos.
“Chego atrasado e exausto”, lamenta. Às vezes, Leandro desiste de voltar para casa ao fim do dia, por causa do cansaço excessivo. Por isso, opta por pernoitar no centro de convivência do IFB. O calvário enfrentado por ele nos vaivéns entre sua residência e o local de estudo afeta, há décadas, passageiros em todo o Distrito Federal. Principalmente, quem vive mais distante do Plano Piloto.
Nesta quinta reportagem da série DF na Real, o Metrópoles aborda a precariedade do transporte rodoviário, causada por superlotação, linhas escassas e benefícios falhos, entre outras adversidades. Nas matérias anteriores, os temas foram saúde, segurança pública e educação, além da situação na Rodoviária do Plano Piloto. Em cada edição, os 11 candidatos ao GDF são questionados sobre propostas para, caso eleitos, solucionar as principais mazelas do serviço público na capital do Brasil.
Leandro pega um ônibus circular para chegar à estação do BRT no Gama. De lá, segue rumo à Rodoviária do Plano Piloto, para, na sequência, subir em mais um coletivo, com destino ao IFB. “Só não ficamos tão prejudicados porque alguns professores começam as aulas meia hora após o horário previsto. Eles entendem que a maioria dos alunos não consegue chegar a tempo”, conta.
A insuficiência de linhas também causa insatisfação em Ana Carolina da Costa, 20. Estudante de agroecologia no IFB, ela tem de esperar até duas horas para embarcar de volta para casa, no Riacho Fundo II. “Há apenas três linhas: às 7h30, 12h e 18h. Quando tenho aula até as 16h, preciso aguardar muito tempo para pegar o último ônibus”, reclama. Após essa espera, a jovem demora quase três horas para chegar em casa. Ela também pega dois coletivos nesse trajeto.
Longas rotas
Os usuários que não precisam pegar tantos ônibus por dia também enfrentam desafios, com a mesma consequência: demora para chegar ao destino. Até quem depende de apenas uma linha reclama. Moradora do Paranoá, a monitora de educação infantil Fabiana de Aguiar, 34, gasta uma hora e meia em ônibus para percorrer trajeto de 27,8km do terminal da cidade rumo à W3 Norte.
“A linha que pego [0.101] passa pelo Itapoã. Isso aumenta muito o trajeto. Se houvesse ônibus direto do terminal para a W3 Norte, eu chegaria mais rapidamente”, lamenta. Nos fins de semana, a redução drástica das linhas é o principal incômodo dos passageiros no Paranoá. O resultado? Longa espera nas paradas. “Fico até uma hora para embarcar”, conta.
O auxiliar de câmera Phelipe Monteiro, 25 anos, enfrenta esse desafio nos dias úteis. “Há um intervalo muito grande entre os ônibus que vão da W3 Norte, onde trabalho, a Samambaia Norte, onde moro”, reclama. Para evitar a espera na parada, ele pega um circular rumo à Rodoviária do Plano e, de lá, volta para casa. Porém, essa alternativa pesa no bolso dele.
“Tenho de pegar dois ônibus em vez de um. Ou seja, poderia pagar uma passagem [R$ 5], mas gasto duas [R$ 8,50]: uma de circular [R$ 2,50], outra de ônibus normal. Mas não consigo, porque os coletivos para Samambaia Norte demoram a passar na W3 Norte”, explica.
Superlotação
Logo após sair do trabalho, em uma clínica na L2 Sul, a fisioterapeuta Lilian Carvalho, 28 anos, apressa o passo em direção à parada mais próxima, às 19h. Anseia em pegar o primeiro ônibus para chegar em casa, no Paranoá. Entretanto, segundo ela, os coletivos costumam ignorar os passageiros. O motivo? Superlotação.
“Quando estão muito cheios, os ônibus não param. Quando consigo pegar o das 19h20, chego em casa às 20h30. Mas, se esse não para, pego outro às 19h40, mais ou menos, e chego quase às 21h. Ou seja, duas horas após sair do trabalho”, diz.
A cena se repete no BRT: “Empurra-empurra na hora de entrar”, descreve a auxiliar de serviços gerais Luiza Sousa, 46, moradora de Santa Maria. A superlotação, segundo ela, causa constrangimento diário. Porém, nenhum deles foi tão embaraçoso quanto ter sido expulsa do transporte por falha no sistema de reconhecimento do Cartão +Vale Transporte. “Meu cartão travou, tive de descer. Além disso, ficou zerado. Precisei passar muito tempo na fila do DFTrans”, recorda.
Luiza atribui parte dos problemas enfrentados por passageiros ao crescimento populacional acentuado nos últimos anos. “Parece que o número de ônibus não aumentou como deveria”, critica.
O DF ocupa o topo da lista de unidades da Federação onde houve maior crescimento populacional de 2012 a 2017. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a quantidade de habitantes nas regiões administrativas saltou 11,4% nesse período. Em 2015, 2,85 milhões de pessoas viviam no DF. Dois anos depois, o número aumentou para 2,91 milhões.
Boa parte dessa população depende do transporte público. Dados mais recentes da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) 2015/16, da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), apontam que 38% dos brasilienses utilizam ônibus para ir ao trabalho.
A ida de Lilian ao trabalho também é problemática. Não por causa de ônibus abarrotados, mas devido a desvios no trajeto. Segundo ela, a linha que utiliza acessava a L2 Sul pela Ponte das Garças, no início do Lago Sul, mas alterou a rota. Isso tem aumentado o tempo de espera da fisioterapeuta dentro do transporte.
“O ônibus passou a ir até o início do Lago Sul e passar pelo Balão do Aeroporto. Essa mudança ocorreu sem prévio aviso e, por causa dela, chego atrasada no trabalho. Deveria estar lá às 13h, mas chego às 13h10 e, às vezes, há pacientes me esperando
Lilian Carvalho, fisioterapeuta
Passe Livre Estudantil
Os passageiros enfrentam empecilhos não somente nas viagens de ônibus. A burocracia também conturba a rotina de quem utiliza benefícios como o Passe Livre Estudantil. Eles se queixam, principalmente, da quantidade insuficiente de acessos diários.
Estudante de saúde coletiva da Universidade de Brasília (UnB), Emerson Canuto, 18, mora em Santa Maria. Para ir e voltar do campus Darcy Ribeiro, na Asa Norte, ele precisa pegar seis ônibus. Apesar disso, o Transporte Urbano do DF (DFTrans) só disponibiliza quantidade mensal suficiente para quatro viagens diárias.
“Acabo tendo de pagar as outras duas passagens. Eu não trabalho. Então, isso pesa muito para mim”, lamenta. Emerson também reclama das longas filas nos postos do DFTrans. Principalmente, no da Galeria dos Estados (Asa Sul), onde os contemplados resolvem as pendências do Passe Livre Estudantil.
Problemas como esse têm sido recorrentes. No mês passado, estudantes madrugaram em frente ao posto do DFTRans na Galeria dos Estados. Mesmo após o início das aulas, os usuários do Passe Livre enfrentaram dificuldades para utilizá-lo. Eles se queixaram de desatualização do cartão ou falta de reconhecimento pelo sistema. Os entraves afetam alunos dos ensinos médio, fundamental e superior e os fazem perder dias letivos para solucioná-los.
“Corujão”
Se a vida para quem pega ônibus durante o dia já é difícil, para os passageiros da noite e da madrugada a situação é ainda pior. Quem embarca nos “corujões” tem outro motivo para se preocupar: a violência, que se soma aos recorrentes problemas de falta de cobertura em algumas regiões, mau funcionamento do Passe Livre Estudantil, atrasos e superlotações.
O estado de alerta é constante. Desde o momento em que os passageiros esperam pelo coletivo, o trajeto até o ponto de descida e a caminhada para casa, o sentimento é de medo de se tornar vítima da criminalidade. A sensação é comum entre todos os estudantes e trabalhadores entrevistados pelo Metrópoles em paradas de ônibus de diversas regiões do DF.
Num ponto localizado entre o Setor Comercial Sul (SCS) e um grande shopping na W3 – uma das cracolândias de Brasília – o técnico em manutenção predial Manoel Inácio, 38 anos, aguarda a chegada do transporte para voltar a Sobradinho, onde mora. No horário do retorno, não há mais linhas que passem próximo a sua casa e, por isso, tem de pegar o “baú lotado” para Planaltina e descer na BR-020.
“Não dá para vacilar. A gente precisa ficar olhando para todos os lados. Aqui tem muito morador de rua e gente drogada. Se bobear, eles vêm e nos roubam. Na caminhada para casa é pior, são 15 minutos isolado no escuro. Eu aperto o passo para chegar logo”, relata Inácio.
Moradora da Cidade Estrutural, a estudante de história Nathália Leite, 18 anos, também não se sente segura. “Numa hora dessas, quem não tem medo?”, questiona a jovem. Ela conta que, se o professor ultrapassar cinco minutos além do programado para a aula, que termina às 23h, o coletivo passa e ela fica na parada. Quando isso acontece, a saga para retornar à casa fica ainda maior. “Aí eu preciso ir para a rodoviária, porque não passa mais”, diz.
Para o operador de telemarketing Bruno Gomes, 25 anos, o temor de assaltos o acompanha durante toda a viagem. “Eu nunca tive esse azar, mas, em uma ocasião, desci num ponto e, no seguinte, os bandidos anunciaram assalto e fizeram um arrastão nos passageiros”, conta. Para Bruno, mais ônibus, pontualidade e policiamento traria paz para os usuários do transporte noturno.
Segurança
Segundo a Polícia Militar, a corporação faz operações diárias em paradas de ônibus, para reforçar a segurança de trabalhadores na volta para casa durante a madrugada. A patrulha se estende até as primeiras horas manhã, na ida para o trabalho.
“Na Estrutural, por exemplo, a PM realiza pontos de demonstração (viaturas estacionadas em horários e locais pré-determinados) durante o período de maior fluxo de pessoas nas paradas e também na volta para casa. Entretanto, ressaltamos que a criminalidade não é apenas fator de policiamento. Variáveis como renda, educação e legislação branda interferem diretamente na sensação de insegurança”, reforçou a corporação, em nota.
Outro lado
Questionada pelo Metrópoles, a Secretaria de Mobilidade informou que o governo “tem feito diversas melhorias no sistema de transporte público do DF e, para melhor atender o usuário, foi feita a otimização do sistema com a criação de cerca de 70 novas linhas e a readequação de outras 1,7 mil”.
A pasta ressaltou que deu início à renovação dos veículos que operam no sistema e que já foram entregues mais de 100 ônibus para a população, entre eles, nove movidos a biodiesel B-20 e 2 coletivos 100 % elétricos.
“Além disso, de acordo com a Portaria nº 46 de 13/07/2018, todas as concessionárias que operam linhas cujo itinerário inclua a EPTG estão obrigadas a adquirir prioritariamente veículos dotados de porta de ambos os lados, motor traseiro ou central e piso baixo, para fins de intensificar o uso da faixa exclusiva de ônibus existente naquela via”, disse.
Ainda de acordo com a Semob, “em maio de 2016, foi lançado o primeiro Programa de Mobilidade do Distrito Federal, o Circula Brasília, que já entregou diversas ações”.
A secretaria destacou uma série de iniciativas, como o Bilhete Único; a entrega de 17 terminais rodoviários, entre novos e reformados; a implantação da biometria facial; a ampliação das quatro pontes sobre o córrego Samambaia e Vicente Pires localizadas na EPTG; e a implantação de um conjunto de intervenções (novas pistas, pontes, viadutos e túneis) no Trevo de Triagem Norte, entre outras.
Veja as propostas dos buritizáveis para o transporte rodoviário: