Biometria facial nos ônibus não reconhece mudança visual de alunos
Estudantes relatam problemas: uma teve o benefício bloqueado após cortar o cabelo e a outra, por conta da transição de gênero
atualizado
Compartilhar notícia
Quanto é preciso mudar para se tornar irreconhecível? No caso de Giulia Soares, 19 anos, bastou assumir os cachos e adotar um corte novo para o Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans) achar que outra pessoa estava utilizando o Passe Livre Estudantil dela. Então, quando as aulas voltaram, em março de 2018, a surpresa: o cartão da estudante de jornalismo da Universidade de Brasília (UnB) estava bloqueado.
A foto é de 2016. À época, a jovem usava o cabelo liso e mais longo. Como perdeu o prazo para se justificar, pois não tinha mais acesso ao e-mail cadastrado, Giulia precisou recorrer à Defensoria Pública a fim de garantir o benefício ainda neste semestre. “Para voltar a ter o Passe Livre é uma grande burocracia”, lamentou a universitária. O novo cartão chegou um mês depois.Confira a “fraude” apontada pelo DFTrans no uso do cartão da Giulia:
O processo de detecção de possível trapaça inicia com um software que compara o usuário à foto do arquivo. Depois, duas pessoas analisam as imagens antes de atestar a irregularidade, segundo o diretor-técnico do DFTrans, Guilherme Fernandes.
Maria Eduarda Krasny (foto em destaque), 20, passou por uma mudança ainda maior: o processo de transexualização. A aluna de letras da UnB também perdeu o direito ao Passe Livre porque não a reconheceram na foto tirada antes da transição de gênero.Moradora de Taguatinga, Maria Eduarda disse ter desembolsado R$ 17 por dia de passagens, entre dezembro de 2017 e março de 2018, período em que participou de curso de verão no campus da Asa Norte, onde estuda, até as aulas regulares voltarem.
Antes disso, a universitária pediu a atualização do e-mail. Mas quando identificaram a possível fraude, enviaram a solicitação de justificativa para o endereço on-line antigo, de acordo com Maria Eduarda. Ao descobrir o bloqueio, a acadêmica procurou o DFTrans e a Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh).
“A secretaria nem respondeu. O DFTrans disse que não justifiquei no período de 10 dias, mas o erro foi deles”, relatou. Para utilizar o transporte com a gratuidade ainda no mesmo semestre, Maria Eduarda precisou pagar a segunda via. Segundo a universitária, uma foto recente foi entregue. No entanto, quando recebeu o novo cartão, em torno de dois meses depois, ainda constava a imagem antiga. “Achei um desrespeito”, desabafou.
Hoje, consigo usar meu Passe Livre, mas com foto que não corresponde à minha pessoa e nome que não me identifico atualmente
Maria Eduarda Krasny, 20 anos, aluna de letras da UnB
Embora espere a confirmação do nome social nos documentos pessoais para então requerer a mudança no Passe Livre Estudantil, a jovem sugere que sejam criados espaços para inseri-lo, além de um local para alterar o gênero na atualização realizada por meio do site.
O que é
A biometria facial tornou-se obrigatória para toda a frota do transporte público do Distrito Federal em abril. Segundo o Governo do Distrito Federal (GDF), cerca de 2,8 mil ônibus atendem à população. O sistema funciona assim: acima dos validadores dos cartões, há câmeras que captam imagens de quem passa pela catraca. Por meio de um software, elas são comparadas com as fotos cadastradas.
Caso a irregularidade seja confirmada, o benefício é suspenso. O usuário, então, tem a chance de responder a um processo administrativo. Se os esclarecimentos forem considerados insatisfatórios, o cartão é bloqueado. Caso isso ocorrer, o estudante só poderá pedir um novo cartão no semestre seguinte. No caso de pessoa com deficiência, o prazo é de 12 meses.
Mais dor de cabeça
A estudante de pedagogia da UnB Luana Alves, 19, garante ter perdido o benefício em 2017 após erro da biometria facial. O cartão foi bloqueado em junho, quase nas férias, mas a “fraude” teria ocorrido em março. A foto cadastrada é de 2014.
“De acordo com o moço que me atendeu, o sistema era novo e a minha foto estava muito antiga, mas tinha como me reconhecer. Eu não usava nenhum acessório, nem nada escondendo o meu rosto, porém, o cabelo estava mais curto”, lembrou. Conforme contou Luana, ela só voltou a usar o Passe Livre normalmente no retorno das aulas, em agosto.
Os problemas com o Passe Livre não se restringem à biometria facial. Aluna de serviço social de uma faculdade particular, Thalita Rodrigues Braz, 19, por exemplo, afirma estar sem a gratuidade nas passagens desde o segundo semestre de 2017, época em que a estudante mudou de instituição. Desta vez, de acordo com o argumento repassado, o cartão dela estava queimado.
Para resolver, a universitária precisou pagar a segunda via, mas não conseguiu pegar o cartão porque, no dia marcado, ela não pôde ir devido ao fato de estar trabalhando. Desde então, foi ao posto do DFTrans ao menos seis vezes tentar regularizar a situação. “Sempre que volto, é algo completamente diferente do que está errado e nunca solucionam o meu problema”, reclamou.
Presidente do Conselho de Direitos Humanos do Distrito Federal, Michel Platini afirma ter recebido reclamações de diversas naturezas em uma visita ao posto do DFTrans da Galeria dos Estados. “Tem a cobrança da segunda via mesmo quando o usuário não tem responsabilidade pela leitura [da biometria]. Pessoas estão pagando passagem há mais de um semestre”, pontuou.
Segundo Platini, um relatório está sendo produzido e deve ser entregue à Secretaria de Mobilidade. “Se não avançarmos, pretendemos buscar a Justiça. O Passe Livre é um direito”, frisou.
O outro lado
De acordo com Guilherme Fernandes, durante o período de testes, de outubro de 2017 a março de 2018, o sistema identificou fraude em 7 mil cartões do Bilhete Único. Entre os casos flagrados pela câmera, houve pessoas sem deficiência usando a gratuidade e empréstimo para familiares.
“A eficácia da biometria é muito grande”, garantiu o diretor-técnico do DFTrans. Conforme informou o gestor, atualmente há em torno de 290 mil beneficiários do Passe Livre Estudantil. Sobre o caso da Giulia, ele admitiu que uma mudança de cabelo não poderia interferir na avaliação do sistema.
Segundo sugestão do diretor-técnico do DFTrans a respeito de Maria Eduarda, a universitária precisar entrar em contato com a Ouvidoria a fim de contestar as informações desatualizadas. Em resposta à Thalita, Guilherme Fernandes disse que, em regra, se o e-mail para pegar o cartão foi enviado, só precisa fazer o reagendamento para ir buscá-lo.
A Sedestmidh informou que Maria Eduarda deve fazer uma nova carteira em conformidade com a identidade de gênero com o qual se identifica. “É resguardado à pessoa o direito de ser identificada em todos os seus documentos civis ou inserida no processo transsexualizador. Caso Maria Eduarda precise de mais orientações, ela deve procurar o Creas da Diversidade, na 614 Sul”, destacou a pasta, por meio de nota.