Velozes e furiosos 2. Rachas na Rodoferroviária afrontam autoridades
Durante três semanas, o Metrópoles acompanhou os pegas no local. Sem fiscalização, motoristas apostam corridas sem nenhum receio
atualizado
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Com voz firme e postura desafiadora, o jovem provoca: “Aqui tem gente da Justiça Federal, advogado da União, só cara ‘pica’. Mexeu com essas pessoas, vai ter”. A ameaça é endereçada ao Departamento de Trânsito (Detran) e às polícias Civil e Militar, que, na visão do rapaz, não são capazes de acabar com um esquema que há anos zomba das autoridades de segurança do Distrito Federal.
No estacionamento do Shopping Popular, ao lado da antiga Rodoferroviária, motoristas em carros potentes se encontram para corridas clandestinas. Os rachas ocorrem sempre às quintas-feiras. O movimento começa por volta das 21h e se estende até cerca de 1h. Há dois anos e sete meses, o Metrópoles denunciou os pegas no local. Receosos com a repercussão da notícia, à época, o grupo abandonou o espaço, mas a fiscalização frouxa foi o combustível de coragem para que os amantes da velocidade voltassem a fazer do lugar um autódromo.
A concentração se dá ao lado de uma área reservada a exames do Departamento de Trânsito (Detran). A menos de 600 metros, chega-se à sede do Transporte Urbano do DF (DFTrans). Ainda parados, donos dos veículos se desafiam com fortes aceleradas. Quanto mais ensurdecedor o barulho, mais olhares curiosos são atraídos. Muitos têm necessidade de provar que o motor envenenado é capaz de fazer o carro “voar baixo”.
Encontrar adversários para começar um pega não é difícil. Basta um aceno de cabeça para os carros emparelharem – normalmente na saída do balão da antiga Rodoferroviária – e arrancarem em alta velocidade. A maioria opta por um racha curto, um tiro de 500 metros pela via marginal da Estrada Parque Indústria e Abastecimento. Alguns, mais empolgados, no entanto, ganham as faixas da Epia a mais de 200km/h e dão sequência à disputa em meio a motoristas em carros comuns que nada têm a ver com a irresponsabilidade.
Não há muitas regras para quem quer colocar à prova o poderio do seu possante. Chevette e Caminhonete Ford F250 rivalizam na pista, bem como Parati x Audi A3. Ao retornarem, sobram comentários acerca do desempenho dos “pilotos”.
O exibicionismo chega a beirar o ridículo. No último dia 5, um homem chegou ao evento deitado sobre o capô de um Honda Civic em movimento. Outro participante do encontro o repreendeu, mas ele ignorou os apelos e continuou a circular pelo estacionamento em cima do carro.
Veja o vídeo abaixo:
Furto de câmera
Organizados, os membros do grupo costumam olhar com desconfiança aqueles que chegam ao evento sem ser por indicação de algum conhecido. Na última quinta (12/4), ao perceberem que eram filmados pela equipe do Metrópoles, o passageiro de um veículo passou perto do carro da empresa, e com os dedos indicador e polegar simulou uma arma apontada para os jornalistas.
Diante da ameaça, a reportagem se retirou do local. Mais tarde, ao retornar, uma das câmeras instaladas numa árvore havia sido furtada. Um boletim de ocorrência policial foi registrado, mas até a última atualização deste texto, o equipamento segue desaparecido.
“Odeio pobre”
A reportagem do Metrópoles veiculada em 2015 expôs rusgas entre os integrantes do grupo de encontros de automóveis. Antes, os duelos em via pública eram precedidos de cerveja e catuaba. Também era comum ver carros com som “nas alturas”. Agora, mais precavidos, eles evitam bebidas alcoólicas e música em volume estridente.
Um rapaz que se apresentou como “preparador de automóveis” e “motivador emocional” dos pilotos garantiu que o evento só começou a ficar visado pela fiscalização quando pessoas de origem mais humilde passaram a frequentá-lo. “Da última vez, deu merda não por ter gente acelerando, foi porque começou a descer para cá neguinho da Ceilândia, de Taguatinga e botar ‘sonzão’ gigante. E onde tem pobre, tem polícia. Odeio pobre por causa disso, porque atrai coisa ruim”, acusou.
Veja o vídeo
Encontro na L4 Sul
Com a repercussão da matéria de 2015, um grupo preferiu escolher outro local para acelerar. No estacionamento externo em frente ao badalado restaurante Rubayat, na L4 Sul, alguns dissidentes se reúnem também às quintas, por volta das 21h. Assim como ocorre na antiga Rodoferroviária, os amantes de veículos “mexidos” fazem manobras proibidas, como cavalo de pau e “zerinho”, que consiste em fazer movimentos circulares, geralmente com as rodas dianteiras com menos movimento.
Em 30 de abril de 2017, a L4 foi palco de uma tragédia provocada por um racha. Testemunhas contaram que uma Land Rover Evoque, dirigida pelo bombeiro militar Noé Albuquerque, e um Jetta, conduzido pelo advogado Eraldo José Cavalcante, estavam emparelhados, em alta velocidade, na via.
Segundo Eraldo, ele teria perdido o controle do Jetta e atingido um Fiesta onde estavam quatro pessoas da mesma família. A força foi tanta, que o carro das vítimas capotou. A traseira do veículo ficou completamente destruída. No banco de trás, devidamente presos ao cinto de segurança, estavam Ricardo Clemente Cayres e sua mãe, Cleusa Maria Cayres. Os dois morreram na hora.
Embora tenham usado a L4 Sul como pista de corrida, a polícia não soube informar se Noé e Eraldo costumavam frequentar os encontros nos arredores do Rubayat.
Lista dos clandestinos
De acordo com o diretor-geral do Detran, Silvain Fonseca, o órgão tem uma lista com dezenas de veículos cadastrados que costumam ser vistos em eventos clandestinos. Segundo ele, mesmo em greve, a instituição tem monitorado os rachas no DF. “Eles se acham espertos, acima da lei, mas sabemos quem eles são e onde praticam esses pegas. Se continuarem, em breve serão flagrados, seja pelo Detran ou pela Polícia Militar.”
Conforme o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o condutor ou promotor de corrida em via pública pode pegar de seis meses a três anos de detenção. Eles ainda estão sujeitos à multa de R$ 1.915,40 e à suspensão do direito de dirigir por até dois anos. Caso o motorista esteja dirigindo embriagado, receberá outra multa, no valor de R$ 2.934,70. E, com base na Lei Seca, ainda poderá responder criminalmente.
Em nota, a Polícia Militar assegurou que faz patrulhamento frequente nos arredores da antiga Rodoferroviária, mas não explicou por que, mesmo assim, os pegas ocorrem sem qualquer intervenção do poder público.
No Shopping Popular, o policiamento é realizado pelo 7º Batalhão. “O comando da unidade disponibiliza viaturas e bases móveis que fazem pontos de demonstração diuturnamente. Os carros da instituição ficam parados em locais estratégicos com o objetivo de inibir ações criminosas na área”, informou a PMDF.
Veja algumas imagens do encontro de carros na antiga Rodoferroviária: