Ratos, pombos e fungos ameaçam memória da capital do país
Animais e fezes foram encontrados junto a arquivos históricos. Sem ar-condicionado, acervo audiovisual tombado pela Unesco está fechado
atualizado
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Mais de 500 mil fotos originais e 2 mil vídeos em VHS e películas de 35 e 16 milímetros. Com importância histórica reconhecida mundialmente – inclusive com o selo do programa Memória do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) –, o acervo audiovisual do Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF) está fechado desde dezembro do ano passado e sem data para reabertura.
A superintendência do órgão afirma que a visitação foi suspensa por conta do mau funcionamento do ar-condicionado e que o acervo não corre riscos. Mas, funcionários denunciam a contaminação do material histórico por fungos. A presença de pombos e ratos – além das fezes desses animais – também é uma queixa dos servidores. E não só nos locais onde estão os documentos tombados, mas também em depósitos de responsabilidade de secretarias, administrações, órgãos, empresas e autarquias públicas.
O alerta é que muitos arquivos históricos podem se perder antes mesmo de serem conhecidos pelo público, como rolos de filme de 35mm do cineasta Dino Cazzola, italiano que registrou a construção de Brasília.
As latas com o material estavam a ponto de ir para o lixo, literalmente. Dentro de sacos plásticos comuns, do tipo utilizado em lixeiras, as películas, guardadas no arquivo da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb) só não foram descartadas porque servidores do ArPDF notaram o equívoco.
Há anos financiados por uma bolsa, os servidores fazem um diagnóstico dos arquivos espalhados por entidades do Distrito Federal. Eles visitam os órgãos públicos das administrações direta e indireta em busca de material relevante. Mas, frequentemente se deparam com situações lamentáveis.
Funcionários do ArPDF contaram ao Metrópoles que foram encontrados arquivos completamente destruídos, guardados em condições precárias. No rol de situações absurdas, foram localizados documentos encharcados, infestados por pombos e a presença de ratos mortos. Os relatos constam em documento, que está em fase de elaboração, para esmiuçar como o DF cuida da própria memória.
Mas, de acordo com o superintendente do Arquivo Público do Distrito Federal, Jomar Nickerson de Almeida, o levantamento ainda não foi concluído e não há data para que ele seja finalizado e divulgado.
O superintendente do ArPDF afirmou que o diagnóstico ainda está sendo elaborado e que, por isso, “não era possível comentar o documento”. A responsável pela empreitada, a diretora de Gestão de Documentos, Rejane Canuto, não pôde falar com a reportagem por conta de problemas de saúde.
De portas fechadas
Tombado pela Unesco desde 2007, o arquivo audiovisual do ArPDF é consultado por pesquisadores de diferentes lugares do Brasil e do exterior. Em 2016, por exemplo, uma equipe de TV francesa buscou imagens da construção de Brasília e historiadores belgas investigaram a Missão Cruls. A Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil foi chefiada pelo astrônomo Luiz Cruls, que, na década de 1890, esteve em Goiás para a demarcação dos limites do DF e a determinação do local para a construção da capital federal.
Também em visita ao Arquivo Público, pesquisadores dos Estados Unidos buscaram informações sobre Burle Marx, paisagista, arquiteto e artista que assina projetos como a Praça das Fontes, na Torre de TV, e a Praça dos Cristais, no Setor Militar Urbano.
Confira imagens:
Interdição às escondidas
No entanto, as consultas ao acervo estão comprometidas desde dezembro do ano passado. No site do órgão, contudo, não há qualquer aviso sobre o impedimento. Mas quem solicita uma consulta por telefone ou presencialmente é informado que o local está “fechado por tempo indeterminado para tratamento”. Nenhuma outra explicação é dada. É a primeira vez que o acervo, que completou 33 anos em 2018, está inacessível ao público.
Funcionários do ArPDF denunciaram ao Metrópoles que o acervo foi interditado após ser encontrado um “pó branco” sobre os arquivos. O material teria sido contaminado por fungos e levou o comando a tomar providências, mas sem comunicar oficialmente o problema.
“Está sendo tudo feito às escondidas, para evitar alarde. Vivemos sob vigilância para que ninguém descubra, não informaram nada no site, por exemplo. Se fosse um problema simples, por que esconderiam?”, questionou uma funcionária que pediu para não ser identificada. Ela explica a razão do anonimato: “Nunca houve concurso para o ArPDF, então, quem trabalha aqui é concursado de outro órgão ou comissionado. Todo mundo tem medo de perder o emprego”.
Outro funcionário do órgão contou a mesma história à reportagem. De acordo com ele, o atual prédio do Arquivo Público do DF não tem a estrutura necessária e submete o material histórico a danos irreparáveis. “Há uma infestação de pombos, eles estão por toda parte. Além disso, o sistema elétrico não comporta os equipamentos de ar-condicionado, que sempre queimam ou deixam de funcionar”, explicou. Ele também pediu para não ter o nome revelado, por medo de perder o cargo.
Na sexta-feira (16/3), o Metrópoles esteve no acervo fechado para visitação. Parte do material foi retirado das salas onde estavam e levados para outro espaço, na área administrativa do prédio. De acordo com o superintendente do ArPDF, Jomar Nickerson de Almeida, são os arquivos mais sensíveis e que precisam de mais cuidados. “Aqui, nós temos controle total de temperatura e da umidade. São feitas checagens diárias”, afirmou Almeida, ao mostrar a sala improvisada. Lá estão originais de fotos da construção de Brasília e fitas em VHS.
A situação dos arquivos que continuam nas antigas salas, no entanto, é mais preocupante. A “ala” foi fechada com fitas de segurança e um dos cômodos, completamente esvaziado. Outros três ainda abrigam parte do acervo. Em um deles, repleto de rolos de filmes de 16mm e 35mm, o cheiro de vinagre é forte e o ar-condicionado estava desligado no momento da visita da reportagem.
Outro lado
O superintendente do Arquivo Público reconheceu que o prédio onde o acervo está guardado enfrenta problemas com a rede elétrica e com a presença de aves. “Mas estamos investindo para resolver esses problemas. Contra os pombos, por exemplo, foram instaladas barreiras físicas e químicas, além da retirada dos ninhos”, explicou.
Almeida afirma que o acervo audiovisual foi fechado apenas por conta do mau funcionamento dos equipamentos de refrigeração. “Não houve contaminação, pó branco nem nada assim. Houve, sim, problema com o ar-condicionado. Por isso, retiramos a parte mais sensível dos arquivos e fechamos o acesso”, afirmou.
O superintendente acrescentou que, apesar de não haver qualquer problema com o acervo, as consultas foram interrompidas porque os documentos “estão fora da ordem de catalogação”, o que dificultaria o manuseio.
Ele também informou que não há data para a reabertura do acesso público. “Estamos fazendo uma contratação emergencial para a reforma do sistema elétrico. Depois das obras, teremos que higienizar e realocar os arquivos. É um processo demorado”, explicou.
O Arquivo Público esclareceu ainda que a parte do acervo audiovisual que está digitalizada pode ser acessada normalmente. E que a pane elétrica e as medidas para resolver o problema provocaram pequenas alterações no atendimento à população, como o aumento do tempo para responder os pedidos relacionados aos arquivos sem versão digital.
O órgão também informou que, desde 2017, pesquisadores bolsistas, financiados por edital do Fundo de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), sem vínculo com a administração direta e indireta, estão realizando o trabalho de coleta de dados em todos os órgãos do governo. O objetivo é, com base nos resultados, orientar políticas públicas para a gestão de documentos do DF.