Terra e trabalho. Mulheres chefiam 35% das propriedades rurais no DF
Elas ocupam posições de liderança e desempenham atividades que, antes, eram predominantemente masculinas. DF está acima da média nacional
atualizado
Compartilhar notícia
O expediente de Maria do Socorro de Lima (foto em destaque), 62 anos, começa com o nascer do sol. Ela acorda às 5h para ordenhar o leite, alimentar os animais, cuidar do plantio de milho, entre outras atividades rotineiras. Também é ela quem cuida das burocracias que envolvem a parte administrativa dos três funcionários que emprega, a gestão financeira e as questões relacionadas a contratos. São 18 hectares de terra e 111 animais para cuidar.
Maria é uma das 5.268 mulheres à frente de propriedades rurais no Distrito Federal, segundo dados da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). O número representa 35% entre as mais de 15 mil cadastradas no órgão, o que coloca o DF acima da média nacional. O último Censo Agro, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgado em 2017, indica que apenas 19% dos estabelecimentos eram geridos por mulheres. Apesar de viverem em um meio predominantemente masculino, as produtoras estão conquistando cada vez mais espaço e mostram que o trabalho na terra também é coisa de mulher.
Maria do Socorro retrata a força feminina no campo. Deixou a vida que tinha no município de Passira, em Pernambuco, e chegou a Brasília em 1986 para realizar o sonho de comprar um pedaço de terra junto ao marido e a seus três filhos. Em 2005, o homem foi embora e deixou para a agricultora a tarefa de cuidar dos filhos e da gleba. Desde então, ela assumiu toda a responsabilidade pela gestão da chácara. “Você tem que ter pulso firme ou ‘dar uma de doida’ para ser respeitada”, conta ela ao Metrópoles.
“Tem uns que chegam dizendo: ‘Vou atender a senhora, não. Arranja um velho aí para mandar, que eu não vou obedecer mulher, não’. Você tem que passar por cima de tudo isso. Se não tiver pulso, não fica. Desiste na primeira dificuldade. E as dificuldades são constantes.”
Apesar dos percalços, Socorro não se vê fazendo outra coisa. “O ser humano tem de ter alguma função na vida e uma das mais brilhantes é fazer comida para o seu semelhante.”
A agricultora procura levar a tranquilidade que vê no campo para a gestão da propriedade. “Eu não nasci para ser mandada. Também não gosto de mandar, de ser autoritária. Gosto da convivência pacífica, de ser amiga das pessoas que trabalham comigo”, ressalta.
Mãos que produzem
Em meio ao verde das plantas e o laranja no chão de terra, Valdira de Almeida, 36, e seu Astrogercílio, 65, construíram o barraco de madeira onde vivem há mais de 10 anos. Pela casa, roupas, eletrodomésticos antigos e uma pequena árvore de Natal dividem espaço com os artesanatos trançados com fibra de bananeira e palha de milho, que a mulher produz e vende.
A família mora no Assentamento Pequeno Willian, no Núcleo Rural de Planaltina. Valdira veio da Bahia e o marido, do Quilombo Kalunga, localizado em Cavalcante (GO). Desde pequena, a agricultora e artesã viveu na roça, em meio à plantação. O gosto pela terra foi herdado dos antepassados, que sempre trabalharam em área rural.
“Eu não aguento ficar na cidade, não. Cidade é só para resolver as coisas, voltar para casa e dormir”, brinca Valdira. A rotina é pesada. Limpa a casa, cozinha, lava louça e também cuida dos alimentos orgânicos que produz na propriedade de aproximadamente seis hectares. “Só tenho descanso à noite.”
Valdira faz parte de um grupo do assentamento que estuda novas técnicas de artesanato – que, entre as práticas não agrícolas, constitui uma das principais atividades desenvolvidas por mulheres em área rural. São cachepots, cestos e objetos de decoração produzidos a partir de materiais reaproveitados, como a palha e o capim. Sem custo com a matéria-prima, Valdira vende as peças por valores entre R$ 10 e R$ 20.
Aos poucos, o casal vê a vida ao redor melhorar. O próximo passo é abandonar o barraco de madeira improvisado. Com recursos recebidos do Incra, foi possível começar a levantar uma casa de tijolo, com dois quartos e cozinha americana. “Vai ficar tudo chique”, ri.
Guardiã da natureza
A poucos quilômetros da casa de Valdira, mora Gustavina Alves, 59. Ela também produz artesanatos e planta orgânicos, em um lote de cinco hectares e meio, no Pequeno Willian. A propriedade segue o sistema de produção agroflorestal, que propõe o cultivo das espécies junto às plantas nativas da vegetação. Como se a plantação e o cerrado fossem uma coisa só.
A casa em que vive com o marido é feita de taipa de mão, uma mistura de bambu com terra, e foi levantada pelas braços do casal. Gustavina foi criada em um ambiente semelhante e quis construir seu próprio lar dessa forma para preservar a memória da família. A morada contrasta com verde que cerca a propriedade. “A gente produz aqui o suficiente para comer, doar para os outros e vender o excedente”, explica.
“Isso aqui queimava todo ano”, conta, apontando para as árvores ao redor. “Depois que viemos para cá, ficamos monitorando para que não entrasse fogo. Escolhemos lugares bem ralos para plantar e poder fechar mais o cerrado, preservar.”
As técnicas que aplica na propriedade vêm do que aprendeu a vida inteira morando no campo e também dos ensinamentos na faculdade. Gustavina é formada em agroecologia pelo Instituto Federal de Brasília (IFB) e pós-graduada em Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística, na Universidade de Brasília (UnB). “É uma luta. No dia a dia, a gente não para.”
Na propriedade, as tarefas de casa e da roça são divididas igualmente. “Aqui não tem essa coisa. Somos parceiros mesmo”, assegura. Ela conta que, apesar das limitações do próprio corpo, é capaz de fazer o serviço como qualquer pessoa. “Pego a enxada e vou capinar com ele (o marido). Mas, assim, vai chegando uma certa idade que você vai começando a sentir dor. Eu ‘peguei’ uma dor no braço, acho que foi de tanto carpir lá no outro acampamento (do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST). A gente fazia mutirão em que todo mundo plantava. Eu ia para roça com o pessoal e trabalhava igual.”
Gustavina gosta da qualidade de vida que tem no campo, mas aponta questões que precisam melhorar. O acesso à saúde, por exemplo, é uma barreira. Recentemente, a trabalhadora rural tem enfrentado problemas para conseguir remédios e fazer exames de prevenção.
Mesmo com as dificuldades, não há nada que a faça sair do lugar onde mora. Até já chegou a trabalhar na cidade, como copeira. A monotonia fez com que a experiência não durasse muito tempo. “Menina, aquilo era um tédio. Eu não aguento viver desse jeito”, enfatiza.
Protagonismo
A gerente de Desenvolvimento Sociofamiliar da Emater-DF, Letícia Martinez, explica que, no contexto histórico, as mulheres ficavam mais restritas às atividades da casa e à produção de artesanatos e pequenas plantações, como hortas. Hoje, o cenário mudou. “Atualmente, a gente tem mulher trabalhando em qualquer área da propriedade rural. Tanto na parte de produção, quanto na administração, gestão. Elas fazem de tudo”, pontua.
“Inclusive, áreas como o artesanato, que era considerado um hobby, também passaram a ser uma atividade produtiva. Elas começaram a capitalizar, como forma de renda para a família, atividades que faziam tradicionalmente”, acrescenta a gerente.
Letícia ressalta que, de fato, a população do campo tem dificuldades para ter acesso a serviços básicos, como saúde, transporte e lazer. Os postos de saúde são distantes e nem sempre atendem a todas as especialidades. “Alguns locais têm espaço para fazer atividade física – aqueles PECs (Ponto de Encontro Comunitário). Mas os moradores não têm orientação de como utilizar, muitos não sabem como fazer o exercício. Então, em relação à saúde, eles têm um distanciamento muito grande de quem está na cidade.”
“Atividades culturais, por exemplo, são muito escassas. Basicamente não se tem na área rural, a não ser na escola e na igreja. Mas cinema, teatro e outras atividades de lazer são poucas”, conta a gerente.
Martinez destaca que, mesmo com as adversidades, as mulheres conseguem ocupar um grande papel de liderança das propriedades. “Já são protagonistas. Elas têm várias atribuições. É o trabalho, a família, os filhos. São líderes, geralmente, das comunidades dentro da área rural e ainda cuidam da propriedade, da alimentação da família”, finaliza.
Encontro Distrital
No próximo dia 10, a Emater-DF realiza o VII Encontro Distrital de Mulheres Rurais, que vai reunir parte dessas lideranças para discutir as principais demandas da comunidade do campo.
Além disso, neste domingo (5/12), ocorre a Feira Rural, no Estacionamento 13 do Parque da Cidade. As produtoras Valdira de Almeida e Gustavina Alves estarão presentes, vendendo seus artesanatos e produtos orgânicos.