“Sessão de espancamento”, diz juíza ao afastar policiais penais da Papuda
Leila Cury afirma que mesmo que os apenados tenham tido condutas afrontosas, a situação não tem o condão de legitimar as agressões
atualizado
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A juíza Leila Cury da Vara de Execuções Penais (VEP) descreveu as cenas de violência registradas por câmeras de segurança dentro do Complexo Penitenciário da Papuda como “sessão de espancamento”. Na decisão em que determinou o afastamento de três policiais penais, filmados agredindo dois presos, a magistrada destaca a gravidade da conduta dos servidores.
Os dois fatos, que foram registrados pelas câmeras, ocorreram na noite de 16 de abril deste ano. O caso, com as imagens, foi revelado com exclusividade pelo Metrópoles, nesta quinta-feira (3/6).
Na decisão, Leila Cury diz que, mesmo que os apenados tenham tido condutas afrontosas, a situação não tem o condão de legitimar as agressões por parte dos servidores. “Condutas que, para além de deslegitimar a intervenção dos agentes públicos, é inegavelmente uma das causas aptas a fomentar a atuação do crime organizado.”
A magistrada segue afirmando: “Ora, se o Estado, por seus representantes, por mais que haja um querer, uma vontade ou ideal de “justiça” por trás da ação cometida não respeita as próprias regras e, por via de consequência, se iguala àquele que em data pretérita foi considerado criminoso, não terá legitimidade alguma para processar, julgar e punir quem quer que seja, sob pena de voltarmos todos para o tempo de vigência da Lei de Talião. Olho por olho, dente por dente.”
Para Leila Cury, não pode haver nenhuma exceção, nenhuma tolerância, nenhuma seletividade na proteção dos direitos humanos, sendo dever do Estado garantir essa universalidade. Assim, se o desrespeito parte do próprio Estado por meio de um ou mais de seus representantes, “deve ser repelido com toda veemência, por colocar em cheque a credibilidade de parte do sistema de justiça criminal.”
Ao se referir às imagens gravadas por câmeras de segurança, a magistrada relatou que um dos internos foi retirado de sua cela e colocado no chão, algemado e quase desnudo e, na sequência, foi submetido a uma “sessão de espancamento” com chutes, socos (inclusive com uso de uma tonfa), pontapés, praticada por vários policiais penais, “que não se intimidaram nem mesmo diante da câmera que captava as imagens do corredor da ala de confinamento.
Assista:
As sessões de violência teriam contribuído para a exoneração do ex-secretário de Administração Penitenciária (Seape) Agnaldo Curado, em 25 de maio último. O caso foi considerado gravíssimo pelas autoridades após câmeras instaladas nas galerias do Bloco D da PDF I flagrarem cenas em que um detento é espancado por nove policiais penais armados com tonfas – espécie de cassetete.
O caso é apurado pelo Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional (Nupri) do MPDFT e acompanhado de perto pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Sem defesa
Os dois presos alvo das agressões teriam brigado no interior de uma cela que abrigava 23 internos, por volta de 18h40. Os policiais penais integrantes da equipe de plantão correram até o local e teriam dado ordens para a confusão cessar. Em seguida, um dos servidores apontou uma escopeta calibre 12 por dentro de uma das passagens de ar usada para ventilar a cela e abriu fogo. No vídeo, é possível identificar o momento em que faíscas provocadas pela combustão do disparo saem pelo cano da arma longa.
Veja:
Um dos apenados recebe a ordem de abrir a porta da cela em que ocorria a briga e fica com o rosto voltado para a parede. Em seguida, outro interno envolvido na confusão deixa o interior do local, senta no corredor e cruza os dedos das mãos atrás da cabeça. Posteriormente, o detento se levanta, tira o short e fica apenas de cueca. O grupo formado por nove policiais chega logo depois, e o espancamento começa.
Sem apresentar qualquer reação, o interno é cercado e golpeado com tonfas, enforcado e jogado no chão, onde recebe chutes e pisões. As imagens não mostram o outro detento apanhando, embora ele também conste como agredido na investigação conduzida pelo MPDFT. Após o episódio, os dois foram levados para o “castigo”, tipo de solitária em que os presidiários ficam afastados da massa carcerária sem direito a banho de sol.
Denúncias graves
Denúncias sobre as agressões foram feitas tanto no âmbito do Ministério Público quanto da Câmara Legislativa. Poucos dias após os espancamentos, promotores do Nupri tomaram conhecimento de que um dos internos, mesmo com suspeita de fratura, não havia recebido assistência médica.
A denúncia acrescentou, ainda, que atendimentos jurídicos por videoconferência estariam sendo cancelados quando os custodiados apresentavam lesões corporais, a fim de evitar que esses ferimentos fossem vistos. Nessas hipóteses, aponta o documento, a justificativa era a de que o cancelamento seria em razão do isolamento por suspeita de contaminação por Covid-19.
As gravações foram entregues ao Ministério Público pelo então Diretor da PDF I, delegado Mário Lúcio de Menezes do Amaral. Cerca de um mês depois, no entanto, Mário Lúcio foi exonerado do cargo e substituído pelo policial penal Helton José Meireles Júnior, chefe do plantão responsável pelas agressões cometidas contra os presos.
Lesões confirmadas
Logo após as agressões, os policiais penais se viram obrigados a confeccionar uma ocorrência administrativa, e os presos precisaram ser levados ao Instituto Médico Legal (IML), onde passaram por exame de corpo de delito.
Apenas em um dos detentos, conforme mostra o laudo, foram constatadas as seguintes lesões: “Ferida contusa medindo cerca de 2 centímetros em região palpebral superior esquerda com edema leve local. Edema leve da mucosa interna do lábio superior; ferida contusa superficial de cerca de 1 centímetro em região occipital direita da cabeça; escoriação de cerca de 3 centímetros de diâmetro em região anterior do joelho direito e escoriação de cerca de 5x2cm em região posterior do ombro direito”.
O segundo detento a passar pelo IML apresentou machucados em decorrência do suposto espancamento, como um dente quebrado e lesões em um dos punhos.
Versões contraditórias
O Ministério Público também apura o conteúdo da ocorrência administrativa confeccionada na Papuda. Quando confrontadas pelas imagens registradas nas câmeras de segurança, as alegações dos policiais penais seriam contraditórias.
Os fatos não teriam ocorrido exatamente como descrito na ocorrência administrativa. As declarações iniciais dos sentenciados aos médicos legistas e aos representantes da direção da PDF I também não condiziam com o descrito pelos policias penais.
Em 28 de maio, um promotor de justiça e sua equipe passaram o dia realizando oitivas de pessoas presas na PDF I. As investigações seguem em andamento.
Direitos humanos
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da CLDF, Fábio Felix, encaminhou à Seap um pedido de investigação sobre o episódio. No documento, o distrital pediu “a análise dos fatos relatados e das solicitações elencadas, e a tomada das providências que garantam a dignidade dos internos do Sistema Penitenciário do DF”.
Veja o ofício abaixo:
Já o MPFDT, em nota, confirmou a investigação e ressaltou que a intenção é identificar outros envolvidos nas agressões. Veja o texto, na íntegra:
“Poucos dias após os fatos, o Ministério Público recebeu denúncia sobre as agressões e de imediato iniciou investigação interna sigilosa, requisitando à direção do presídio o resguardo da integridade física dos presos e o envio das filmagens sobre os fatos. Em seguida, o MPDFT realizou diligências, identificou policiais envolvidos e pediu que fossem afastados, o que foi prontamente atendido pela VEP. No dia 11 de março de 2021, foi editada a Recomendação Conjunta º 01/2021 – Nupri/MPDFT – NEP/DPDF que, dentre outras providências, indica que a SEAPE deve enviar ao MPDFT, no prazo de 48h, as imagens relativas a eventos envolvendo violência contra custodiados. O MPDFT prossegue com as investigações para apurar os fatos e identificar os demais envolvidos, a fim de que sejam devidamente responsabilizados. Também analisa a possibilidade de investigar possíveis vazamentos, uma vez que a investigação é sigilosa”.
O que diz a Seap
A Secretaria de Administração Penitenciária também se manifestou e destacou ter afastado os envolvidos em cumprimento à decisão expedida pela VEP. A pasta ainda ressaltou que a atitude dos servidores não faz parte dos protocolos da unidade. Leia a nota abaixo:
“Ainda no âmbito da investigação administrativa, a Seape/DF determinou a abertura de sindicância para apurar todas as circunstâncias acerca da denúncia ora apurada pelo Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional (Nupri) do MPDFT. Em relação aos presos envolvidos, a pasta determinou a transferência deles para outra unidade prisional. A medida visa assegurar a integridade física dos detentos. Ressalte-se que a Seape/DF não coaduna com qualquer desvio de conduta por parte de seus servidores e adotará todas as medidas cabíveis para averiguação dos fatos informados e, caso se confirmem, promoverá a devida responsabilização dos envolvidos“.