Selo da censura: veja peças teatrais carimbadas pela ditadura militar
Peças teatrais no acervo de Dulcina de Moraes mostram como era o carimbo da censura e as atuações para contornar possíveis bloqueios
atualizado
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O nome da peça, a quantidade de atos, os atores e as personagens eram informações fundamentais para que o texto fosse representado em palcos brasileiros durante os 21 anos de ditadura militar. A cultura precisava ser constantemente revisada por censores para que tivesse a liberdade de existir. Nas salas do Teatro Nacional a situação não foi diferente. Peças que tinham até mesmo a presença dos generais ditadores que ocupavam a cadeira da presidência na época precisavam ser altamente avaliadas para que pudessem entrar em cena.
Algumas peças teatrais ganharam o carimbo de aprovadas pela ditadura militar. A comédia em três atos O Noviço foi aprovada para estar nos palcos da sala Martins Pena em 18 de maio de 1967. No documento, destaca-se que a peça seria encenada por Dulcina de Moraes. “Liberada para representação livre de restrições”. Cada página do roteiro tinha um um carimbo com assinatura para que não houvesse uma frase fora da ordem.
Outra peça liberada foi Tia Mame: “Podendo ser representada”, destaca o documento da censura federal. A obra foi escrita pelos dramaturgos americanos Jerome Lawrence e Robert Lee, traduzida por Odilon Azevedo – companheiro de Dulcina. O espetáculo teve dois atos. A peça foi liberada em 1973.
“Tinham dois personagens principais: a Tia Mame e a melhor amiga dela, a Clara. E ela me selecionou para fazer”, lembra Natanry Osório, pioneira no DF e ex-administradora do Lago Sul. “Ficamos muito amigas e foi uma emoção muito grande contracenar com Dulcina”.
Natanry contou que também participou da peça Mulheres no ano anterior. “Sabe o que é ter pessoas sentadas no chão”. A apresentação durou três noites e teria tido na plateia da sala Martins Pena o presidente ditador Emílio Médici.
“Dulcina de Moraes nunca chegou a ser censurada pela censura federal. Pelo menos nós não temos nenhum tipo de registro disto nos documentos oficiais ou nos registros de anotações dela em diários”, explicou o diretor do Espaço Cultural da Fundação Brasileira de Teatro, o ator e produtor Josuel Junior.
“No entanto, a gente tem que saber que ela fazia como qualquer artista da época e todo o texto teatral era submetido a análises da censura federal para que ela pudesse dar a classificação indicativa a permissão ou não daquelas obras”.
Josuel acredita que a fama de Dulcina também era responsável por driblar e amenizar a censura. Além de que ela estava em processo para a construção do Teatro Dulcina no Conic e ainda para mudar a sede da Fundação Brasileira de Teatro do Rio de Janeiro para a nova capital do Brasil.
“Então, mesmo sabendo que a cultura não era bem quista pelo governo pelos militares, ela estava sempre no enfrentamento nos gabinetes, pedindo verba, pedindo auxílio para concretização do que viria ser a primeira faculdade de artes do país, a primeira faculdade de artes privada do país”, ressaltou Josuel.
Dulcina registrava os encontros com as autoridades em seus diários pessoais. Em quatro de julho de 1979, Dulcina registra o encontro com o presidente Figueredo. “Quatro horas da tarde! Tinha sido marcada para aquele dia e aquela hora a audiência que eu pediria ao presidente Figueredo alguns dias antes. Ele seria o terceiro presidente de muitas peregrinações pelo Palácio do Planalto em busca de recursos para terminar a FBT.”
Veja menções em diários:
Os arquivos fazem parte dos 70 da história do teatro e estão guardados em baús, armários e guarda-roupas no subsolo do Conic, área central de Brasília. Em meio à poeira, um depósito acumula relíquias luxuosas, como figurinos de Dior e de Dijon, quadros do século 19, sapatos e chapéus feitos sob medida, entre outras peças que nem sequer foram descobertas. As peças de grife compõem um cenário abandonado do camarim de Dulcina de Moraes, embaixo da Fundação Brasileira de Teatro.
Em meio a dívidas que podem inclusive levar o prédio a leilão, o acervo começou a ser catalogado. O objetivo é dar início a um inventário dos artigos pessoais, profissionais e históricos da vida e da obra da atriz, que possa servir também para que a venda não seja permitida. Também é a primeira vez que os materiais são trabalhados na intenção de serem expostos, para que as pessoas conheçam.
“Se esse lugar for a leilão, o que vamos fazer com tudo isso? Onde vamos colocar todos esses vestidos? O que vamos fazer com tanta história?”, questionou o diretor Junior.
Atualmente, as dívidas do Dulcina estão acumuladas em R$ 20 milhões e o prédio, de aproximadamente 5 mil metros quadrados, deve ir a leilão para pagar apenas R$ 328.467,34.
A data já foi definida por leiloeiros e a previsão é que a venda do prédio ocorra em 14 de setembro deste ano. Caso não seja arrematado neste dia, outra data já foi previamente estabelecida: 28 de setembro. Se o processo correr, a partir de outubro o cenário do Conic pode começar por mudanças.
A elaboração do inventário é apenas uma das estratégias que a equipe que administra o teatro atualmente tem usado para tentar ganhar fôlego e manter o espaço.
A Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, criada e mantida pela Fundação Brasileira de Teatro (FBT), é fruto do sonho e do compromisso da atriz Dulcina de Moraes com a formação de artistas e arte-educadores no Brasil. A faculdade, com mais de 40 anos de atuação, foi criada em 1982, em Brasília, oferecendo originalmente os cursos de Licenciatura em Educação Artística, Bacharelado em Artes Cênicas e Bacharelado em Música.
Assista a um trecho do filme 24 horas de sonho, estrelado por Dulcina e Odilon:
A FBT é uma das mais antigas fundações da área artística, instituída em 1955, ainda no Rio de Janeiro. Depois de 17 anos de funcionamento naquela cidade, transferiu sua sede para Brasília, onde se encontra até o presente momento. Assim como a faculdade, sua criação foi um empreendimento de Dulcina.