Seita que manteve jovens em cárcere impedia crianças de irem à escola
Na quarta, um homem de Mato Grosso disse à PCDF que a irmã morreu de crise hipertensiva porque a congregação impedia a entrada de remédios
atualizado
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A seita acusada de manter uma jovem de 18 anos em cárcere privado por quatro meses também impedia que crianças e adolescentes frequentassem a escola. Antes mesmo de a Polícia Civil deflagrar operação para resgatar a garota presa, em 28 de fevereiro de 2018, um inquérito já havia sido aberto para investigar denúncias de que meninos e meninas não estavam matriculados em instituições de ensino. A investigação fala em “dezenas”, mas não precisou quantos garotos e garotas foram prejudicados.
Em depoimento na 20ª Delegacia de Polícia (Gama), a moça confirmou a informação. Além de dizer ter ficado mais de um ano sem ir ao colégio, contou que trabalhava sem receber.
O Metrópoles teve acesso à oitiva. Em três páginas, a vítima descreveu a rotina de clausura na comunidade denominada Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia, situada na chácara Folhas de Palmeiras, às margens da DF-290, na área rural do Gama. No local, cerca de 200 pessoas seguem piamente as ordens da pastora Ana Vindoura Dias Luz, que chegou a ser presa pelo crime de cárcere, mas responde pelo delito em liberdade.
Aos investigadores, a jovem contou que “enquanto esteve na comunidade, realizava trabalhos rotineiros e de cozinha da senhora Ana, mas nunca recebeu”. A moça disse aos policiais ter vivido na comunidade por cerca de dois anos, mas acabou trancafiada em uma sala de 10 metros quadrados após manifestar vontade de voltar a morar com o pai, no Maranhão.
Ao descrever os 120 dias de angústia, contou que tentou fugir diversas vezes, mas “não conseguia escapar pelas janelas porque todas da casa possuem gradeamento por fora”. Num dos raros descuidos de Ana Vindoura e seus seguidores, a moça alcançou a rua e se escondeu no mato, mas foi localizada pelos integrantes da seita e colocada novamente em cárcere.
Veja trechos do depoimento da vítima:
Sobre o inquérito policial que apura os menores da comunidade fora da escola – crime classificado como abandono intelectual – por parte de Ana Vindoura e os pais das crianças, o delegado cartorário da 20ª DP, Paulo Coppi, destaca ter recebido muitas denúncias e que as investigações estão em estágio avançado. “Eles são extremamente fechados e encontramos muitas dificuldades para colher informações, mas temos recebido relatos anônimos que corroboram nossa linha de investigação”, disse.
Morte na seita
Já em relação ao delito de cárcere privado, o delegado Vander Braga, também da 20ª DP, ressalta que, após o caso se tornar público, outras pessoas procuraram a unidade policial para relatarem experiências traumáticas dentro do terreno onde funciona a seita.
Na quarta-feira (9), o autônomo Gilmar dos Santos Almeida, 42 anos, entrou em contato com a polícia brasiliense para denunciar que a irmã morreu na chácara há cerca de 30 dias e a família não teve autorização nem mesmo para resgatar o corpo e realizar um velório digno.
Dione dos Santos, 49 anos, era seguidora de Ana Vindoura há nove anos. Embora sofresse com graves crises de hipertensão, ela era impedida de tomar remédios. “Eles não permitiam tratamento convencional. Diziam que todo medicamento deveria ser feito lá. Sem tratamento adequado, minha irmã acabou morrendo”, contou Gilmar.
“Minha mãe foi duas vezes tentar tirá-la de lá, mas não conseguiu, pois era vigiada. Ela era obrigada a costurar dia e noite: começava às 5h e ia até as 22h. Quando soubemos do falecimento, pedi para um sobrinho que estava em Brasília ir ao IML liberar o corpo para enterrarmos em Mato Grosso, mas a chefe [Ana Vindoura] não autorizou. Por telefone, falou que eu era o diabo e não permitiu”, afirmou.
O homem contou que a maior frustração da família foi não ter conseguido prestar a última homenagem à mulher. “Minha sobrinha falou que minha irmã foi enterrada no setor de indigente do cemitério, sem nenhuma dignidade. Ela [Ana Vindoura] faz lavagem cerebral nas pessoas. Tem de estar na cadeia.”
Outro caso
Nessa quarta (9), o Metrópoles revelou o caso de outra jovem mantida presa na chácara por três semanas. Na sala de cerca de 10 metros quadrados, Luana*, de 19 anos, passava as 24 horas do dia tendo como única atividade ler livros bíblicos.
A jovem contou detalhes da rotina na seita comandada a mão de ferro pela pastora Ana Vindoura. “Quando decidi que queria sair dali e viver minha própria vida, não deixaram. Fiquei três semanas trancada”, conta Luana.
Ela diz sofrer de depressão, mas a doença é interpretada por Ana Vindoura e seus seguidores como sinal de que o corpo está possuído pelo demônio. Durante o período de confinamento, Luana só tinha autorização para ir à cozinha e ajudar nas tarefas domésticas. As chaves da casa ficavam sempre em posse de Ana Vindoura. Embora a pastora e os chamados obreiros usem aparelho celular, a maioria dos membros da comunidade não pode ter telefone.
Na chácara, não há televisão ou rádio. A doutrinação imposta por Ana Vindoura também proíbe ingestão de qualquer tipo de carne e produtos industrializados. Quem escolhe viver na propriedade tem de abrir mão até do creme dental, porque “faz o dente apodrecer”, segundo a pastora. A higiene bucal é feita a partir de produtos orgânicos. Itens de banho, como sabonete e xampu, não podem conter qualquer traço de química.
Luana conta ter começado a morar na igreja com a mãe, em 2016. Em julho do ano passado, a mulher teria iniciado um relacionamento e se mudou, deixando a garota na chácara. Luana passou a trabalhar na fabricação de pães, que eram revendidos em padarias da região. “Eu não ligava muito porque gostava daquele trabalho e entendia que eu deveria retribuir de alguma forma, já que morava ali. Na minha cabeça, as coisas ficaram mais sérias quando quis sair para procurar emprego e me prenderam”, relata.
A garota só não ficou mais tempo mantida em cárcere graças a um descuido de Ana Vindoura. “Ela dormiu no sofá e eu consegui pegar o celular dela e mandar mensagens para o meu pai pedindo socorro.”
Ao ler o relato da filha, o aposentado Ronaldo Lucas Soares, 60 anos, entrou em desespero. Morador de uma pequena cidade no interior de Minas Gerais, imediatamente comprou passagem para o DF. Antes, porém, passou em uma delegacia da Polícia Civil de Minas Gerais e registrou boletim de ocorrência. O caso chegou ao Ministério Público mineiro, que, por sua vez, deu ciência à Polícia Civil do DF.
Segundo Ronaldo, Ana Vindoura teria tomado conhecimento da movimentação da polícia e da Justiça e decidiu libertar a jovem a fim de evitar escândalo. “Minha filha parecia um passarinho saindo da gaiola de tanta felicidade. Não fazia ideia que ela estava sem a mãe e passando por essas humilhações. Agora, quero ir até o final para que os responsáveis por esse sofrimento dela sejam punidos”, diz ele, que tenta juntar recursos para pagar um psicólogo para Luana. “Ela não está bem, parece traumatizada.”
Início
A congregação surgiu há 12 anos em Corumbá (GO). Durante oito meses, Ana Vindoura e parte do grupo passaram em Mato Grosso, com argumento de pregar o evangelho nas ruas da capital, Cuiabá. Para se sustentar, os seguidores da pastora vendiam livros com interpretações da Bíblia escritas pela própria Ana Vindoura.
Filhos de membros da seita peregrinavam em semáforos e comércios da região oferecendo as publicações, o que levou o Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso a denunciar a obreira por trabalho escravo e infantil. A 4ª Vara do Trabalho de Cuiabá condenou a “líder espiritual” a pagar R$ 100 mil. A defesa dela recorreu e o processo encontra-se em tramitação no Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Segundo Ana Vindoura, as acusações contra ela são “prenúncio do apocalipse” e “obra de satanás”. “Essas pessoas, quando estão com problemas espirituais, começam a inventar coisas. Nunca mantive ninguém obrigado aqui. Todo mundo vai e volta a hora que quiser”, defendeu-se.
*Nome fictício a pedido da vítima