Ceilândia tem quadras setorizadas para a venda de drogas
A organização dos criminosos na maior cidade do DF fez a venda de entorpecentes ser dividida por tipo de substância: cocaína, crack e maconha
atualizado
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O tráfico de drogas transformou Ceilândia em um “supermercado de entorpecentes” a céu aberto. Dia e noite, clientes perambulam por becos e vielas para saciar o vício. A venda dos produtos ilegais foi setorizada, e lembra a organização dos grandes estabelecimentos comerciais. A diferença é que, na gôndola das ruas, a oferta é outra: onde se vende cocaína, traficantes e usuários de crack não entram. O mesmo princípio é seguido nas quadras onde ocorre o comércio de maconha e, também, o repasse das pedras amareladas.
Levantamento feito por investigadores da 19ª Delegacia de Polícia (P Norte) mostra que o lado norte da maior cidade do Distrito Federal foi dividido pelos traficantes em setores. A divisão começa pelo famoso “corredor do pó”, passando pelo itinerário do “bonde da maconha” até chegar à “estrada dos tijolos amarelos”.Todos os pontos estão mapeados pela Polícia Civil, que já prendeu 100 traficantes, em 79 flagrantes, nos últimos 12 meses apenas em Ceilândia Norte. Porém, o tráfico está enraizado na região. O ofício já passa de pai para filho, segundo policiais.
O corredor do pó
A Quadra QNP 19 é conhecida por vender a cocaína mais pura da capital da República, segundo já apontou laudos do Instituto de Criminalística (IC). Cada grama da “massa”, como é chamado o pó pelos traficantes, é vendido por cerca de R$ 40. Usuários que vivem em áreas nobres do DF se deslocam até Ceilândia para comprar a droga, principalmente nas tardes de quinta e sexta-feira.
Nesta quadra só se vende cocaína, muito desejada pelos usuários pelo alto teor de pureza. A venda de qualquer outro tipo de droga no local pode resultar na morte do traficante invasor
Fernando Fernandes, delegado-chefe da 19ª DP
Apesar da movimentação nunca parar e ainda ser possível comprar cocaína a qualquer hora do dia, um dos principais chefes do tráfico que atuava na QNP 19 foi preso, em dezembro ano passado. Em seu bolso, a polícia encontrou o extrato bancário do criminoso. Na conta-corrente dele, havia R$ 280 mil, frutos do mercado criminoso da cocaína. “Esse traficante, conhecido como Thiago Saddam, subiu rápido na escala do tráfico e fez fortuna, mas permanece encarcerado e deve ficar preso até o julgamento”, ressaltou o delegado.
Para dificultar a identificação da polícia, muitos traficantes de cocaína que escoam o pó na região utilizam garotas de programa, que passam o dia na porta dos bares e são responsáveis pelo trabalho de entregar a droga aos usuários. A negociação leva poucos minutos para ser concretizada. O cliente decide se quer fazer o programa ou apenas comprar um “papel”, como é chamada a embalagem da cocaína. Elas sobem com o usuário até um dos quartos que ficam em sobrados e fazem a transação. A venda é concluída e elas retornam para a entrada dos bares.
A estrada dos tijolos amarelos
O cenário se transforma nas quadras QNP 1 e 3, onde predomina o tráfico de crack. Os carros importados e os altos valores pagos pela cocaína da QNP 19 dão lugar a usuários mal vestidos oferecendo dinheiro minguado por algumas pedras. Os traficantes flagrados pelo Metrópoles em fotografias e vídeos são os chamados “vapores”, terceiro posto na hierarquia do tráfico. Eles são os responsáveis por escoar pelas ruas toda a droga vendida nas bocas de fumo.
A “farda” é informal: boné, chinelo de dedo, bermuda e camiseta. Os pequenos revendedores passam o dia e a noite alimentando o mercado das pedras amarelas no P Norte.
A transação é tão rápida que, mesmo sendo filmada, a passagem da droga das mãos do traficante às do usuário é quase imperceptível. Em um das imagens (veja vídeo), um homem calvo, encostado na parede, acompanha o tráfico de perto. Ele é o “dono da boca”, mas não encosta na droga. O homem, que aparenta ter cerca de 50 anos, monitora o trabalho dos vapores para evitar prejuízos.
“É preciso materializar provas, como vídeos, fotos, apreensão de drogas e o testemunho de usuários para manter o traficante preso”, destaca o delegado Fernando Fernandes.
A reportagem acompanhou, durante algumas horas, a rotina de um dos traficantes que atua nas quadras onde o crack é o líder de mercado. Com andar desorientado, ele mantém, literalmente, um círculo vicioso: a cada cinco pedras vendidas, ele fuma outras três. O traficante-usuário trabalha para manter o vício. Carregando limpadores de pára-brisas debaixo do braço, o homem magro e já debilitado anda sem rumo pelos conjuntos, simulando vender os acessórios.
Com o passar das horas, ele deixa o disfarce de lado e, sentado no meio-fio, acende mais um cachimbo improvisado. Queima mais três pedras e vai embora, cambaleando.
O bonde da maconha
Nas quadas QNP 5 e 9, o tráfico de maconha comanda o mercado da droga. Tabletes, tijolos ou pequenas trouxinhas são vendidos para distribuidores e usuários. Em virtude da clientela jovem, boa parte das transações começam no mundo virtual. Páginas de Facebook ou grupos fechados no WhatsApp são usados como ferramenta de contato pelos traficantes.
Assim nasceu o “Bonde da Maconha”. Sempre no mesmo horário, um determinado micro-ôninus era usado como local para a venda de maconha. “Tudo ocorria em um grupo de zap zap no qual os valores da droga eram negociados. Os usuários entravam no coletivo no dia e na hora marcados e recebiam a droga”, contou um dos investigadores da 19ª DP.
A polícia começou a monitorar as redes sociais e conseguiu identificar os integrantes do “bonde”. Em telefones celulares apreendidos, conversas entre usuários e traficantes mostram que o grupo já se articulava para vender drogas sintéticas, como o LSD, também chamado de doce (veja fotos). “A nossa preocupação em combater o tráfico de drogas também tem como objetivo reduzir os índices criminais de outros delitos, já que o consumo de drogas acaba provocando uma onda de criminalidade”, analisou o delegado Fernandes.
Boa parte dos crimes ocorre horas, ou até minutos, antes de o fluxo de usuários começar a procurar os pontos de venda de drogas. O resultado são carros arrombados, estabelecimentos comerciais furtados e assaltos a pedestres.
Segundo a comerciante Maria Paula Alves, que trabalha em uma padaria próxima da QNP 5, as lojas passam a fechar mais cedo por conta do tráfico. “Durante o dia, ainda vemos algumas viaturas policiais circularem, mas à noite os usuários duplicam de quantidade e realmente fica perigoso”, conta.