O mistério da Fercal, única cidade do DF sem registros de coronavírus
Desde o 1º caso, há dois meses, são 1.837 infectados na capital. Por enquanto, a RA conhecida por suas fábricas cimenteiras está ilesa
atualizado
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Dois meses após o registro do primeiro caso de coronavírus no DF, a capital do país tem 1.837 pessoas infectadas. No entanto, uma região administrativa chama atenção por não ter sequer uma ocorrência da doença até o momento. Com mais de 15 comunidades e quase 33 mil habitantes, a Fercal permanece ilesa à Covid-19.
Apesar de não haver um motivo específico para explicar tal fenômeno, a soma de alguns fatores pode ajudar a entender por que a cidade não figurou com contaminados no boletim da Secretaria de Saúde: parte da população trabalha nas fábricas de cimento instaladas no local, consequentemente, não se aglomera em transportes públicos lotados.
Outra questão apontada pelos habitantes da Fercal é a grande concentração de mulheres que atuavam como doméstica ou diarista. Dispensadas dos empregos, elas passaram a circular pouco. Há, ainda, quem acredite que a concentração de povoados distantes uns dos outros contribua para dificultar a propagação do vírus mortal.
A carência de espaços para praticar atividades físicas ao ar livre também é apontada como elemento relevante para que o povoado respeite mais a quarentena. Fora isso, soma-se o fato de ser a terceira RA menos habitada do DF.
Para a feirante Aldeci de Sousa, 64 anos, a consciência da população também tem sido fundamental para que os casos não saiam do zero. “As pessoas, em sua maioria, só estão saindo de casa em último caso. Aqui na vizinhança, sempre vejo gente de máscara. Até as festas que tinham aqui perto acabaram”, relata.
Na casa dela, o exemplo é ainda maior. Como Aldeci está no grupo de risco, por causa da idade, os quatro filhos não deixam que ela vá para a rua. “Desde que fecharam a Feira de Sobradinho II, no dia 19 de março, eu não saio. Qualquer coisa que eu preciso, eles vão ao mercado e compram”, afirma.
O professor de Geografia Alisson Jasper, 26, vê na falta de opções de lazer na cidade um motivo para que as pessoas se mantenham em isolamento social. “Falta entretenimento por aqui. O que era um ponto negativo, virou algo positivo nessa pandemia. A gente não tem muito o que fazer”, afirma.
Com as aulas paradas, ele passou a ajudar o pai na padaria da família. Mesmo com o movimento reduzido, a regra é clara e fica na porta do estabelecimento: só entra se estiver usando máscara. “A maioria tem entendido e utiliza”, relata.
A característica interiorana da RA também é apontada como fator que pesa para evitar as contaminações. “A nossa área é grande, mas pouco povoada. Deixamos de ser área rural há pouco tempo e as pessoas eram acostumadas a ficar em casa mesmo”, explica.
Texssandra Vitalino, 34, avalia que a distância da Fercal em relação a outras RAs ajuda a manter o vírus longe. Moradora do Bananal e dona de uma pequena venda, ela vê poucas pessoas chegando ou saindo da comunidade. “É raro as pessoas irem até Sobradinho, por exemplo. A maioria trabalha nas fábricas de cimento ou perdeu o emprego por causa da crise. Se precisam de algo, resolvem na cidade mesmo”, conta.
Mesmo assim, a preocupação de Texssandra é grande. Com a mãe de 65 anos precisando fazer hemodiálise duas vezes por semana, as saídas de casa são restritas ao tratamento. “Põe máscara nela, volta logo e fica trancada dentro de casa. Mesmo se for tomar sol aqui na rua, eu coloco o item pra ela usar”, diz.
Os únicos que ainda rodam por outras cidades, de acordo com a mulher, são os caminhoneiros que fazem entrega dos sacos de cimento, como é o caso do cunhado dela. Texssandra lembra que toda a família tem pedido muito cuidado ao motorista.
Medidas
Para o administrador da Fercal, Fernando Gustavo Lima, a ideia é manter o número de casos zerados pelo maior tempo possível. “Temos seguido todas as orientações do GDF, apoiado o DF Legal nas operações e divulgado bastante os cuidados que a população precisa ter”, elenca.
Conforme promete, serão 500 pares de máscaras distribuídos à população de baixa renda da RA e, mesmo sem casos, uma tenda de atendimento específico para quem tiver sintomas será montada do lado de fora de uma das Unidades Básicas de Saúde da cidade. “Todos os nossos servidores no grupo de risco estão trabalhando de casa. As ações são para minimizar os riscos”, destaca.
Como o ar da cidade é mais poluído pela presença das fábricas de cimento, vários vizinhos da indústria têm problemas respiratórios. “O ar, de fato, é um pouco mais impuro. É um dos motivos que temos tido atenção redobrada, mas as empresas têm seguidos vários protocolos”, pondera o administrador.
Fábricas adotam cuidados
Com cerca de 300 funcionários moradores da Fercal, a Ciplan Cimento afirma ter implementado uma lista de operações restritivas em sua sede e filiais, visando garantir a saúde de seus colaboradores, familiares, prestadores de serviços e clientes.
A produção continua, mas foram adotadas ações como “medição diária da temperatura e dispensa daqueles que tenham qualquer sintoma de gripe; instalação de mais de 100 dispensers de álcool em gel em todas os locais da cimenteira; distanciamento de um metro dentro do trânsito interno; interdição do refeitório com a implantação de nova logística para entrega dos alimentos e antecipação da vacina comum contra a gripe na matriz e filiais”.
Todos os trabalhadores em grupo de risco foram liberados das atividades ou estão em home office. No interior dos ônibus da empresa, os funcionários devem usar obrigatoriamente máscara protetora.
O que diz a Votorantim
Após a publicação da reportagem, a Votorantim Cimentos entrou em contato com o Metrópoles e informou que implantou ações preventivas como “monitoramento e acompanhamento da saúde dos empregados, reforço na higienização e limpeza dos locais de trabalho, áreas comuns e ônibus fretados, separação das pessoas e mudança na rotina dos refeitórios, uso de termômetros infravermelhos nas portarias das unidades, orientações de saúde e higiene para motoristas e transportadores, proibição de viagens a trabalho (domésticas e internacionais)”, entre outros.
A empresa disse ainda que, por meio do Instituto Votorantim, dará um apoio financeiro adicional de R$ 50 milhões às autoridades públicas, instituições de saúde e entidades privadas da sociedade civil para a compra de itens como kits para teste, respiradores e demais equipamentos essenciais de saúde.
As comunidades vizinhas às fábricas, como a Fercal, receberão R$ 5 milhões, que serão distribuídos a instituições, associações, ONGs e outras entidades públicas e privadas localizadas nos municípios onde a empresa atua.