Fila para tratamento psicológico infantil no DF tem mil crianças
Segundo a Defensoria Pública, média de espera por atendimento de crianças e adolescentes com transtornos e distúrbios é de 1 ano e 7 meses
atualizado
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Ele tem apenas 8 anos, mas já tentou tirar a própria vida quatro vezes. Atrás dos olhos inteligentes e do sorriso largo, o garoto sofre muito. Mente e coração são torturados pela morte do pai. A família buscou ajuda no Centro de Orientação Médico Psicopedagógica do Distrito Federal (Compp-DF) na sexta-feira (28/02/2020), mas não encontrou socorro.
Segundo a Defensoria Pública do DF, no caso das solicitações para tratamento de transtornos, distúrbios e doenças mentais infantis na rede pública, a fila de espera, em média, demora 1 ano e 7 meses. Existem pelo menos 1.452 pedidos sem resposta. Desse total, 1.114 são para grupos de entrada para tratamento, e 338 para grupos terapêuticos.
O atendimento psicopedagógico é fundamental para o tratamento de crianças e adolescentes diagnosticados com transtorno do espectro autista (TEA), popularmente chamado de autismo, bem como outros distúrbios decorrentes de problemas na gestação ou consequências de doenças ou acidentes. Crianças e adolescentes vítimas de episódios de violência, drogas e traumas psicológicos também dependem do serviço.
É o caso do menino de 8 anos, cuja identidade será preservada. O comportamento dele começou a mudar há seis meses. “Meu pai morreu e eu fico muito triste por isso”, disse o garoto. A dor e a ausência da figura paterna cresceram com o tempo, e a criança quis tirar a própria vida “para ficar com ele”, contou. O pequeno tentou pular do prédio, se enforcar e até se asfixiar com o travesseiro.
Além das tentativas de suicídio, ele também sofre desmaios. “Eu esperava que um médico me ajudasse, porque eu não quero mais ter essa raiva no meu corpo, entendeu? Eu quero superar isso de uma vez”, pontuou o menino. A mãe da criança ficou decepcionada ao sair da rede pública do DF sem resposta.
A mulher conta que eles foram encaminhados para outros lugares. “Disseram que iriam demorar a chamar. Só isso que falaram. Eu me sinto triste pela situação do meu filho e pela falta de atendimento”, lamentou. Agora, ela buscará apoio em faculdades para o menino, torcedor do Vasco da Gama, que curte futebol e videogame. E mesmo neste mundo digital, guarda sempre tempo para ler livros, principalmente os de aventura.
À espera
Há um ano e meio, o analista de sistemas Sérgio Almeida Nunes, 48 anos, busca atendimento para o filho, Samuel Asafe, 3 anos. A criança foi diagnosticada com autismo. “Dormi na fila do Compp para fazer o primeiro atendimento. Disseram que iam chamar e até hoje nada. Não passei nem por uma fonoaudióloga”, assinalou. A demora é angustiante e prejudicial para o futuro do menino.
Sérgio consultou um neuropediatra na rede privada. “Se meu filho não começar o atendimento específico, pode alterar o autismo dele. Como já tem alterado. Ele foi diagnosticado como autista leve, agora já está como autista moderado. Ele está regredindo”, afirmou. O tratamento particular é muito caro e não cabe no orçamento do analista.
A família buscou ajuda da Defensoria. “Rapaz, você ver seu filho de 3 anos puxar, arrancar os cabelos, ter crises, se morder, se machucar… É complicado. Ele arrancou os próprios cabelos neste ano de tão nervoso”, comentou.
Longo combate
O militar Marcos José de Oliveira, de 32 anos, batalha para garantir o tratamento do filho Heitor Santos, de 4 anos, diagnosticado com autismo e hiperatividade. Há dois anos, a família busca atendimento passando pela rede básica do DF até o tratamento especializado. Na tarde de quinta-feira (27/02/2020), a família conseguiu a entrevista inicial no Compp.
Mas Marcos só conseguiu a entrevista porque fez exames na rede privada. “A gente esperava que o atendimento fosse mais rápido. Na questão do autismo, quanto mais cedo a criança for atendida, melhores são as chances de a pessoa ter uma vida normal”, argumentou. Segundo Oliveira, o maior gargalo do serviço público é o baixo número de especialistas, como fonoaudiólogos e neuropediatras.
Oliveira não é otimista. Mesmo tendo passado pelo primeiro atendimento, calcula que o filho não terá o atendimento completo em 2020. “Neste ano, não espero nada. Realmente estou vindo para um projeto de futuro. É demorado, estressante, mas uma hora vai dar certo”, cravou.
Prejuízo
Graziele Câmara, 41 anos, compartilha história parecida. Ela luta para garantir o tratamento completo para o filho de 13 anos. Ao final dos 11 anos, ele foi diagnosticado com transtorno do espectro autista. O nome do garoto não será escrito nesta reportagem, a pedido da mãe. Os laudos foram demoradíssimos, e sem esses documentos as famílias não têm acesso às terapias oferecidas pelo governo.
A família conseguiu o começo do tratamento no Adolescentro, na 605 Sul. Mas o garoto ainda não começou as consultas multidisciplinares. “Vejo o tanto de prejuízo que ele já teve. Compromete os lados emocional, educacional e cognitivo. Isso influencia em todo o aprendizado escolar. É muito complicado para ele evoluir”, afirma a mulher.
Conselhos tutelares
Famílias buscam atendimento para transtornos e doenças mentais no Conselho Tutelar de Sobradinho 2. Segundo a conselheira Francisca Alves, o Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) de Sobradinho se desdobra para atender a população.
“Antes, tínhamos um dia de acolhimento no Compp. Mas há dois anos o atendimento passou a ser de portas abertas”, destacou. Desde então, o conselho começou a notificar os casos e encaminhar as pessoas ao Compp. “E a devolutiva que a gente recebe é que a pessoa foi e não conseguiu agendar, ou teve o primeiro acolhimento e não teve mais nenhum chamamento”, disse.
Sem resposta da rede pública, a conselheira busca apoio para as famílias nas instituições de ensino particulares, institutos e voluntários.
Mais vulneráveis
Pelo diagnóstico do coordenador do Núcleo de Saúde da Defensoria Pública do DF, Ramiro Sant’ana, as filas afetam principalmente o grupo mais vulnerável, de crianças na primeira infância. Segundo o defensor, a rede pública tem a obrigação de atender as crianças com celeridade e eficiência. Como a criança está em desenvolvimento e não tem resiliência, qualquer tropeço no tratamento pode acarretar em danos definitivos.
“Existe um serviço público estruturado, de qualidade. Mas ele nem de longe consegue atender a demanda. A fila no caso do Compp é assustadora. É inaceitável que uma criança enfrente fila de dois anos. É inconcebível.
Ramiro Sant’ana, defensor público
A Defensoria entrou com ação civil pública pedindo melhorias e mais eficiência no serviço. O órgão solicita a definição de prazos de atendimento entre 10 e 100 dias, para grupos de entrada e terapêuticos. Mesmo limite recomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A ação também pede informações sobre como está a fila e o tempo de espera para atendimentos individualizados, com especialistas como psiquiatras, pediatras e fonoaudiólogos. Segundo Ramiro, são necessárias ações em outras áreas para garantir atendimento de qualidade e eficiência nos casos de saúde mental infantil. São necessários investimentos na neuropediatria, por exemplo.
O outro lado
O Metrópoles entrou em contato com a Secretaria de Saúde sobre o caso. A pasta respondeu por nota que “o ingresso de novos pacientes para os atendimentos multidisciplinar e/ou em grupo devido a diferentes transtornos se dá quando outro paciente recebe alta médica ou evade do tratamento. A maioria desses pacientes necessita de assistência constante e por longo tempo”.
Segundo a secretaria, tratamentos e acompanhamentos são realizados nos ambulatórios, centros de reabilitação e centros de Atenção Psicossocial (CPAS). Esses serviços fazem parte da atenção secundária da saúde pública. A atenção primária é responsável pelos encaminhamentos nas unidades básicas de saúde.
Busque ajuda
O Metrópoles tem a política de publicar informações sobre casos ou tentativas de suicídio que ocorrem em locais públicos ou causam mobilização social, porque esse é um tema debatido com muito cuidado pelas pessoas em geral.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o assunto não venha a público com frequência, para o ato não ser estimulado. O silêncio, porém, camufla outro problema: a falta de conhecimento sobre o que, de fato, leva essas pessoas a se matarem.
Depressão, esquizofrenia e uso de drogas ilícitas são os principais males identificados pelos médicos em um potencial suicida – problemas que poderiam ser tratados e evitados em 90% dos casos, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria.
Está passando por um período difícil? O Centro de Valorização da Vida (CVV) pode ajudar você. A organização atua no apoio emocional e na prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail, chat e Skype, 24 horas, todos os dias.