Umbanda: líder do terreiro mais antigo do DF completa 90 anos
Jurema Pituba Faria, chefe do Centro Espírita Assistencial Nossa Senhora da Glória, fundado há 54 anos, vive em Brasília desde 1962
atualizado
Compartilhar notícia
Discreta, sentada em uma cadeira, a senhora de cabelos e roupa brancos observa muito e fala pouco. Todos que passam por ela se abaixam, pedem a bênção e seguem como se tivessem sido renovados para uma caminhada mais leve. A mulher é Jurema Pituba Faria, pioneira e líder espiritual umbandista, que completa 90 anos nesta segunda-feira (02/03/2020).
O Metrópoles convidou três mulheres próximas da ialorixá para narrar a trajetória de Jurema: dos primeiros anos de morada na capital federal a uma liderança feminina longeva e marcada por superação. Cada uma, ao seu modo e tempo, traz uma leitura particular sobre aquela que se tornou referência.
Nascida no Rio de Janeiro, Jurema chegou a Brasília em 1962. Acompanhou de perto a odisseia da cidade que era Cerrado, poeira e desejo de crescer. Além de sonhos, carregava consigo o marido e os filhos – sete ao todo. Desde então, se passaram 58 anos. Frutificou. Hoje, ela tem 19 netos e 13 bisnetos.
Aqui fundou, em agosto de 1965, o Centro Espírita Assistencial Nossa Senhora da Glória (Ceansg), na 711/911 Norte, local que, por sessão, recebe cerca de 400 pessoas. O terreiro de umbanda é o mais antigo de Brasília em funcionamento, segundo o Inventário dos Terreiros do DF e Entorno, produzido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Daqueles tempos, poucos estão vivos.
Lá, Jurema é mãe, vó, tia, comadre e não tem tipo de grau de parentesco (sanguíneo ou não) que a aproxime mais do coração. É procurada por pessoas para serem aconselhadas por orixás e entidades como Pretos Velhos, Caboclos, Erês e Exús.
Jurema assumiu a chefia do templo em 1982, após o falecimento de seu marido, Jorge da Costa Faria, cofundador do centro espírita. Mesmo antes, já desempenhava sua liderança: discreta, firme e caridosa. Em todo o DF, existem 330 terreiros de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé.
“Pegava no pesado”
Quem conta é a mais antiga filha de santo do terreiro: a servidora pública aposentada Socorro Sousa Vale, de 82 anos. “Ela sempre teve uma atuação muito grande. Pegava no pesado durante as obras do templo novo (um prédio de 1989 construído a partir de doações). Lembro dela buscando panelas emprestadas na Casa do Ceará para virarmos a madrugada fazendo comida para vender na cantina do centro”, recorda.
Até hoje é assim. Apesar das marcas da passagem do tempo, mãe Jurema trata pessoalmente dos cuidados de seu apartamento na Asa Sul, cozinha e faz serviços domésticos. Os mais próximos sabem: ela não gosta de muitas interferências no cotidiano. Mesmo com os reveses da vida, como a morte do marido, de filhos e netos, não fraquejou.
Socorro começou a frequentar o Ceansg em 1973. Desde então, construiu e solidificou a amizade de 47 anos com mãe Jurema. “O que mais me chama atenção é que ela sempre esteve muito atenta a tudo e, apesar da mansidão, tem uma firmeza nas atitudes que é impressionante. Ela é um exemplo de humildade e comprometimento que tento seguir”, elogia.
A atuação de mãe Jurema e do Ceansg atrai todo tipo de gente, seja da capital federal seja de outros cantos do país. Nas sessões, que ocorrem às segundas e sextas-feiras, às 20h, atraem desde nomes que atuam na efervescência política da cidade a moradores de rua e retirantes.
Exemplo
A assistente social Gabriela Faria, de 24 anos, se mira na avó . Mais que isso, tem orgulho da matriarca. A jovem ressalta que ultrapassar a barreira do machismo e do preconceito não é tarefa fácil ainda nos dias de hoje. No passado, a resistência era ainda maior — mais de 60 anos separam as duas gerações.
“Sabendo de suas origens, por ter nascido em uma cultura de uma época completamente machista, ela se empoderou e veio corrigir essa desigualdade e exclusão, sob a orientação do plano espiritual, mostrando que muitas mulheres nos terreiros são tão guerreiras, líderes, inteligentes quanto os homens”, explica.
O Ceansg tem mais de 130 integrantes, popularmente chamados de filhos de santo. Atualmente, o número de mulheres é maior. “Minha avó nos inspira quando chefia o trabalho com toda a doçura e firmeza. Os homens tendem a utilizar da sua compleição física e voz imponente para mandar. Ela nos mostra que não precisou mudar nada o seu jeito feminino de ser e, com toda a sua delicadeza, trouxe o resgate da identidade da mulher como líder”, conclui.
Longevidade
Assim como Jurema, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somente 1,6 mil mulheres no DF chegaram à marca de 90 anos. Os homens dessa idade são ainda mais escassos: cerca de 800. O aniversário de Jurema será comemorado com um ritual festivo no Ceansg, marcado para as 20h desta segunda-feira (02/03/2020).
Avessa a paparicações e holofotes, Jurema evita ser o centro das atenções. Recusa pedidos de entrevista. Certa vez, num momento íntimo, confidenciou como encara a religião. A voz é baixa e o tom, ameno.
“Eu vinha para o centro de ônibus, com sacolas, os meninos pequenos [filhos]. Uma dificuldade. Quando estava abrindo o portão, uma vizinha começou a conversar. Me falou assim: ‘Se esse negócio de umbanda desse certo, você tinha um carro’. Não dei importância. Cada um sabe o que busca e o que recebe de Deus”, relatou.
O legado
A dona de casa Graça Moura, 59 anos, é frequentadora do Ceansg há mais de três décadas. Lá, curou agruras da alma e na umbanda encontrou conforto para enfrentar uma doença grave da filha, há quase três anos.
Ela fala com emoção de mãe Jurema. “Me chama muita atenção a humildade com que ela trata as pessoas. A grande lição dela é tratar as pessoas com muito respeito, carinho, seja pobre, preto ou rico. Ela recebe todos da mesma maneira”, avalia.
Para Graça, o legado de Jurema é o trabalho em prol da comunidade. “Eu a vejo como uma pessoa que pensa no próximo, verdadeiramente. Ela é especial por ser bondosa e muito carinhosa”, finaliza.