Investigados por exorcismo, Arautos do Evangelho têm sede em Brasília
Vídeos de exorcismos não autorizados e de sacerdotes rindo da morte do papa levaram Santa Sé a apurar caso. Sede no DF fica no Lago Sul
atualizado
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A mansão não é luxuosa, mas tem fino acabamento e piso todo em mármore. Nos jardins bem cuidados, ornados por esculturas de santos, há uma tenda onde, aos domingos, fiéis de todo o Distrito Federal participam de missas em busca de conforto espiritual. Não há placas ou qualquer tipo de identificação de que aquele terreno de 6 mil m² na QL 25 do Lago Sul, com vistas para a Ponte JK e comprado por R$ 2,2 milhões, abrigue religiosos com seus rosários atados à cintura, botas militares de cano alto e túnicas em estilo medieval, com a enorme estampa da Cruz de Santiago – também chamada pátea (com pernas) ou militar. Ali é a sede brasiliense da associação católica ultraconservadora Arautos do Evangelho.
Em 16 anos de existência, o grupo fincou raízes em 78 países. Mas suas atividades no Brasil entraram na mira do Vaticano em junho de 2017. A Santa Sé investiga a atuação dos arautos no país depois que circularam na internet vídeos gravados pelos próprios integrantes tupiniquins, supostamente na sede nacional, em Cotia (SP).
As imagens mostram uma reunião na qual o padre Luiz Francisco Beccari lê para outros sacerdotes trechos de uma suposta conversa de um religioso com o diabo, que anuncia a morte do papa Francisco. Os vigários riem. O grupo é crítico à postura progressista de Francisco: os arautos surgiram quando a igreja era comandada por João Paulo II e se expandiram no pontificado de Bento XVI, ambos conservadores.
Embora não tenham permissão da Igreja Católica para realizar exorcismos, as cenas também mostram esse tipo de ritual. Em um dos vídeos, o fundador dos arautos, o monsenhor paulistano João Scognamiglio Clá Dias, participa do ritual de exorcismo com três seguidoras. Nas imagens, é possível ver o religioso dando um cutucão e tapas em uma das mulheres. Ao final, ele diz que ela está curada. Clá estava entre os representantes da associação que gargalham da morte do papa. Com o escândalo, os arautos retiraram os vídeos das redes sociais, e tornaram ainda mais discreta sua atuação.
Confira abaixo gifs retirados dos vídeos que circularam na web:
Veja imagens de divulgação do grupo, que chama atenção pelas vestes em estilo medieval:
A investigação dos arautos pela Santa Sé foi revelada pelo vaticanista e escritor Andrea Tornielli, em artigo publicado no site de notícias italiano La Stampa. O assunto caiu como uma bomba na comunidade religiosa, tanto que foi tratado durante reunião privativa do conselho permanente da Conferência Nacional Dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília. O encontro ocorreu em junho e contou com a presença de 33 bispos. A CNBB, porém, se resguarda e não comenta publicamente o tema.
Encontros discretos, para poucos fiéis
Os Arautos do Evangelho agem no silêncio e trabalham para ocultar da internet as razões que levaram o Vaticano a investigá-los. Em Brasília, eles também atuam com discrição, como o Metrópoles constatou durante visitas à sede do Lago Sul ao longo do último mês. O grupo enigmático promove encontros com os fiéis brasilienses três vezes por semana. Às quartas-feiras, a missa tem início às 19h. Aos domingos, às 11h e 17h.
Durante a semana, o quórum é pequeno e reúne cerca de oito pessoas, fazendo com que a missa seja realizada em uma capela dentro da própria mansão. Aos fins de semana, os atos litúrgicos são realizados sob a enorme e decorada tenda que fica atrás da casa, recebendo aproximadamente 60 fiéis. Os frequentadores são, em maioria, idosos e adultos das classes média e alta, que chegam ao local em carros novos e/ou de luxo. Os poucos jovens presentes são crianças, filhos dos frequentadores.
Xodó dos arautos em Brasília, a imagem de Nossa Senhora de Fátima fica em lugar de destaque no hall de entrada. Ela é levada pelos religiosos nas missões e procissões dentro e fora da casa, inclusive pelas cidades do DF (fotos em destaque e na galeria acima). Produzida em São Paulo, a santa foi abençoada por João Paulo II durante uma das viagens do monsenhor João Clá ao Vaticano.
O enorme terreno onde funciona a seção brasiliense dos arautos foi adquirido em 2013 pela Associação Católica Nossa Senhora de Fátima, vinculada ao grupo, por R$ 2.250.000,00. Devido ao alto valor do imóvel, os arautos tentaram, sem sucesso, se livrar do pagamento de alguns tributos. Para tanto, alegaram que o local abrigaria um templo religioso.
O pedido para imunidade do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) foi negado, conforme publicação na página 17, do Diário Oficial do DF, em 3 de março de 2013. A recusa do governo em isentá-los do ITBI obrigou os compradores a quitarem um valor correspondente a 3% do total do imóvel. Esse tributo é pago quando uma pessoa adquire o imóvel e transfere a titularidade.
Veja imagens da sede brasiliense dos Arautos do Evangelho:
Exorcistas?
Durante as missas de quartas-feiras e domingos na QL 25, não é realizado nenhum tipo de exorcismo. Não há, sequer, leitura das chamadas orações de livramento. As celebrações seguem a liturgia tradicional católica, embora alguns hinos – executados ao vivo por um coral – sejam cantados em latim: a publicação distribuída aos fiéis traz a tradução dessas canções para o português. Em vez do símbolo da Arquidiocese de Brasília, como ocorre em todas as igrejas do DF, as folhas trazem a marca própria dos Arautos do Evangelho: a Cruz de Santiago.
Nos bastidores, a informação revelada por ex-integrantes do grupo é de que os rituais de exorcismo praticados por arautos em todo o mundo ocorrem em sessões privadas, longe dos olhos dos fiéis que frequentam as missas. Procurada para comentar o assunto, a Arquidiocese de Brasília não confirma a realização de práticas exorcistas pelos Arautos do Evangelho e mantém silêncio sobre o caso, medida seguida também pela Nunciatura Apostólica, representação diplomática do Vaticano e que terá a tarefa de investigar as atividades da associação no Brasil.
Oficialmente, os Arautos do Evangelho do DF não negam nem confirmam que os rituais são praticados. O grupo não responde publicamente e encaminhou todas as demandas apresentadas pelo Metrópoles para a assessoria de comunicação, que fica na sede em São Paulo. A reportagem visitou o local e tentou contato diretamente com os religiosos no Lago Sul, mas eles não quiseram se pronunciar sobre as atividades da associação.
No Distrito Federal, o único exorcista habilitado é Vanilson Souza Silva, vigário da paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Lago Sul, e da Associação Padre Júlio Negrizzolo, em São Sebastião. Em todo o país, o total de padres com a certificação não passa de 30.
Existem os leigos. O que eles fazem não é real. Tem que ter autorização. É pura ignorância, pessoas afobadas para fazer o ritual e que não buscam o conhecimento. É igual medicina. Todo mundo acha que pode receitar remédio. No caso dessas pessoas, elas acham que podem medicar (exorcizar).
Padre Vanilson Silva, único padre autorizado pelo Vaticano a fazer exorcismo no DF
Para ele, a Igreja Católica deveria conferir a habilitação para mais párocos do Distrito Federal: padre Vanilson confessa estar sobrecarregado e diz que basta o religioso passar por um curso para conseguir a habilitação. Mas ele faz um alerta: a prática, quando feita por alguém não autorizado, pode piorar a situação dos fiéis que buscam ajuda. “Há muitas pessoas que não precisam de exorcismo, e sim de uma oração de libertação. Muitos pedem o acompanhamento sem terem feito antes todas as consultas médicas possíveis. Às vezes, o caso é apenas uma opressão”, diz.
Religioso é processado
Quem fala abertamente sobre os rituais de exorcismo dos arautos é o gerente de projetos e ex-integrante da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), o religioso argentino Alfonso Beccar Varela. O grupo deu origem aos Arautos do Evangelho, pois o fundador da associação, monsenhor João Clá, integrou a TFP durante anos.
O que chamamos de exorcismo os arautos chamam de ritual privado. Fazem isso porque não têm permissão para fazer exorcismo. Eles acreditam que estão expulsando o demônio e que falam com ele. É interessante notar que muitos desses rituais são feitos nas próprias freiras dos arautos. Tudo muito estranho.
Alfonso Beccar Varela, gerente de projetos e ex-integrante da TFP
Varela é um dos responsáveis pelo vazamento dos vídeos da associação na web. O religioso, que mora nos Estados Unidos, viu a relação com o grupo estremecer ainda mais ao atingir a esfera judicial. O caso envolvendo o argentino e a entidade será deliberado pela corte da Flórida (EUA). “Eles alegam que a publicação dos vídeos têm-lhes causado danos irreparáveis e mencionam que perderam milhares de doadores”, comenta Alfonso Varela.
Polêmica domina círculos católicos
Embora tenham conseguido apagar os vestígios do material na internet, os arautos não conseguiram evitar que o assunto fosse alvo de debate pela comunidade religiosa. Os padres e professores ouvidos pelo Metrópoles confirmam o impacto do tema entre os católicos.
“Criou perplexidade em muitos bispos. Todo mundo viu e ficou com essa impressão. Eu não imaginava que alguém pudesse praticar, mesmo que pedagogicamente, esse tipo de exorcismo em adolescentes. Aquilo ali é um cinema. A Igreja deverá perguntar por que foram feitos esses rituais”, comenta o padre e doutor em teologia João Carlos Almeida, o Joãozinho. Outros dois padres de Brasília, que preferiram não se identificar, também se disseram surpresos ao assistirem os vídeos. Eles não acreditam e nem confirmam que os rituais de exorcismo são feitos em outras unidades do grupo pelo país, fora a sede paulista.
Eles reconhecem que é exorcismo. O que se vê no vídeo é uma possível simulação, talvez criativa, de um exorcismo maior. Os golpes de papel são de uma agressividade simbólica.
Padre João Carlos Almeida, doutor pela USP, PUC e Universidade Gregoriana de Roma-ITA, professor de teologia e educação na Faculdade Dehoniana de Taubaté
Quando questionada, a associação não nega a prática de exorcismo e nem dá explicações sobre o diálogo em que seus sacerdotes riem de uma possível morte do papa Francisco. “Trata-se de vídeos antigos, subtraídos de modo indevido e com divulgação alterada. A associação tomou as providências necessárias, à luz da teologia católica”, explicou o padre Alex Barbosa de Brito, conselheiro dos Arautos do Evangelho em São Paulo, por meio de nota. Sobre a visita da Santa Sé à sede paulista do grupo, afirmou ser “um fato natural, que visa ajudar nas orientações e objetivos em todos os níveis”.
Os especialistas ouvidos pelo Metrópoles explicam que a carta lida em um dos vídeos com a “profecia” da morte do papa seria uma mensagem psicografada do falecido dr. Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, que relata uma conversa mantida entre ele e o próprio diabo. Dr. Plínio é idolatrado pelos arautos, que são uma dissidência do grupo ultraconservador.
O Vaticano já é meu, a cabeça do Vaticano é minha. Ele (papa Francisco) é um estúpido, me obedece em tudo e ama a glória. É uma alma estúpida, que me serve
Trecho da carta lida pelo padre Beccari em um dos vídeos, que supostamente reproduz mensagem do diabo
“Eles dão atenção demais ao demônio. É quase como se acreditassem no pai da mentira”, comenta o padre João Almeida. “Não sei o que os motivou a fazer isso. Exorcismo é algo raro. Se for comprovado que foi feito um ritual de exorcismo eles estarão infligindo o direito canônico. Não podem filmar ou torná-lo público. Isso é um erro. Quando saímos da lei, a igreja nos chama”, acrescentou Vanilson Silva, o padre exorcista do DF.
Igreja tem regras claras
De acordo com a Arquidiocese de Brasília, suspeitas de possessão espiritual devem ser levadas ao conhecimento do padre da comunidade paroquial onde residem as supostas vítimas. O religioso intermediará o contato com um sacerdote autorizado a fazer o ritual do exorcismo. Essa delegação é de responsabilidade do bispo titular da diocese, assim como é função dele pedir permissão ao Vaticano para a prática. A Arquidiocese explica que nenhum padre pode se delegar ou se apresentar como exorcista, a não ser que tenha autorização expressa para tal função.
A Igreja padroniza o ritual de exorcismo católico para evitar saltimbancos, possíveis enganadores. Tudo para que eles não se apossem da prática visando lucro.
Ubirajara Calmon Carvalho, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense e licenciado em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma
Todo eclesiástico pode, no entanto, investigar ou apurar se os fatos que possam estar ocorrendo com uma pessoa tem fundamentos de possessão ou se é um distúrbio. A análise ou a prática ritualista de um exorcismo nunca é levada ao conhecimento público, com o intuito de preservar os envolvidos.
“Possessão é algo raro. É quando o demônio está dentro da pessoa. O mais comum é a opressão. O que temos são pessoas oprimidas, algo que não é só espiritual, mas também afetivo, sobre conflitos pessoais e psíquicos. As pessoas não fazem distinção entre opressão e possessão e aí costumam achar que estão possuídas”, finaliza Padre Vanilson.
Apegados à Idade das Trevas
A classificação oficial dada pela Igreja Católica aos Arautos do Evangelho é de uma Associação Internacional de Fiéis de Direito Pontifício, erigida – com a devida autorização conferida – pela Igreja Católica em 2001. O fundador, monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, também era supervisor geral do grupo. Renunciou ao cargo no mesmo período em que o escândalo dos vídeos veio à tona.
Hoje, a associação conta com 200 sacerdotes e reúne mais de 50 mil homens e mulheres seguidores nos 78 países onde atua. A presença de um arauto chama a atenção pelas vestimentas em estilo militar medieval: padrão seguido também pelos integrantes brasilienses.
“Algumas instituições conservadoras e de denominações tradicionais ficam ligadas à cultura medieval e não têm conhecimento da forma como a religião é hoje. Se apegam à Idade Média e acreditam que as coisas se traduzem na literalidade”, explica o professor Ubirajara Calmon Carvalho, licenciado em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma.
Colaborou Guilherme Sadeck