Quando o mundo dá voltas: filho de catadores no DF vai jogar nos EUA
De família carente, jovem talento, de 15 anos, treina, estuda e conseguiu a proposta para mudar de país graças a um projeto do MPDFT
atualizado
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Os primeiros dribles de Ivanildo Jesus das Neves no futebol, aos 6 anos, despertaram nele um sonho além da profissionalização no esporte: livrar a família da pobreza. Hoje, aos 15, o adolescente, estudante de escola pública, divide um barraco no Núcleo Bandeirante com os pais, duas irmãs e um tio. A moradia, erguida com madeirite encontrada no lixo e coberta por lona, carece de rede de esgoto. O acesso à água potável ocorre somente por doação de funcionários de um motel ao lado.
Entretanto, graças ao projeto Juventude em Foco, fruto de parceria do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) com instituições de apoio, o que parecia ser sonho distante para Ivanildo começa a se realizar. A iniciativa oferece a ele – e a outras centenas de crianças e adolescentes – a oportunidade de treinar futebol.
Assim, o garoto chamou atenção do Orlando City, clube da Major League Soccer (MLS), divisão de elite do futebol nos Estados Unidos. Em consequência, recebeu convite para jogar nas categorias de base do time, com estadia, alimentação e estudo bancados pela franquia da Flórida, inicialmente, por um ano. Ele aceitou a mudança e deve partir em fevereiro de 2019.
Conheça a história de Ivanildo:
“Muito alegre, chorei muito”, diz Ivanildo ao rememorar a emoção vivida no último dia 8, quando foi convidado por um dos presidentes do Orlando City para integrar o time. O adolescente conta que a ficha ainda não caiu completamente. Ele nem sequer imaginou como será a primeira viagem de avião. Afinal, a mudança representará uma reviravolta na vida dele. O jovem concluiu o 8º ano do ensino fundamental e, nas horas livres, ajuda a família na separação de resíduos sólidos.
Até o início deste ano, por não ter dinheiro para pagar o transporte público, Ivanildo pedalava cerca de 23km de casa à Associação Recreativa Esporte Central de Santa Maria (Arec), onde treinava quatro vezes por semana. Gastava cerca de uma hora e meia para chegar ao local. “Isso [o convite do Orlando City] ocorreu graças ao professor Mauro. Eu não tinha dinheiro para comprar o uniforme [R$ 140], ele fez por R$ 70. Também pagou para mim inscrições em campeonatos”, detalha Ivanildo, agradecido pelo empenho do treinador Mauro José de Oliveira, um dos voluntários do Juventude em Foco.
Diante do arrocho financeiro da família do garoto – os pais dele ganham cerca de R$ 350 mensais catando recicláveis –, o professor não poupa esforços para ajudá-lo. Além de assumir parte das despesas referentes ao esporte, é ele quem transporta os participantes do projeto aos locais de competição, em uma van. Há 46 meninos de 6 a 16 anos que treinam futebol conosco, e todos são carentes. Alguns pais colaboram, me ajudam a levá-los aos torneios. Ou pagam aplicativo de transporte. Outros garotos nem sequer vão
Ex-jogador de futebol com passagens pelo futebol brasiliense e do exterior, Mauro repassa aos alunos a experiência acumulada em 18 anos de carreira. Um dos principais objetivos é torná-los cidadãos responsáveis, independentemente de um eventual sucesso no esporte.
“Cobramos muita disciplina deles, notas boas, pontualidade e compromisso. Não aceitamos faltas”, afirma. Segundo Mauro, Ivanildo tem todas essas virtudes, que, aliadas ao talento em campo, compõem a receita do sucesso do adolescente. “Tem o perfil do jogador moderno: é forte, veloz, sabe fazer gol”, analisa o mestre.
Quase o fim
Ivanildo dribla os obstáculos da vida desde os primeiros anos. Aos 3, o menino, nascido em Itiúba (BA), a 294km da capital Salvador, contraiu meningite e quase teve o sonho abreviado. “Ele ficou um mês e 15 dias em coma. Quando deixou a UTI, o doutor me falou: ‘tenho uma má notícia: o seu filho não poderá andar’”, recorda a mãe de Ivanildo, Lidiane da Silva, 30. No entanto, o menino contrariou o médico e, na mesma semana, caminhou pelos corredores do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), na Asa Sul.
Após superar a doença, a pobreza voltou a ser o principal desafio a vencer. “Passamos sem comer, moramos debaixo de ponte e o conselho tutelar tentou tomá-lo de mim”, relembra Lidiane. Porém, as adversidades não abalaram a esperança de Ivanildo. “Ele merece tudo isso. Desde os 6 anos fala em futebol. Hoje, acorda às 5h para ir à escola”, conta o padrasto, Leandro Veloso, 32, que o adolescente chama de pai. Foi o homem quem encontrou no lixo alguns dos pares de chuteiras calçados pelo filho desde a infância. “O que para os outros é resto, para nós é vida”, compara Leandro.
Em meio aos produtos descartados, a família encontrou também a mala que levará os pertences pessoais e os sonhos de Ivanildo. Entre eles, o de trilhar os passos do atacante Vinícius Júnior, de 18 anos, contratado pelo Real Madrid junto ao Flamengo em 2017. Porém, o zíper da bagagem está estragado. “Assim que minha mãe consertar a mala, não vai faltar nela foto da família para quando eu sentir saudade”, destaca o garoto.
Juventude em Foco
O projeto do MPDFT começou no início do ano passado. Hoje, atende mais de 600 crianças e adolescentes do Núcleo Bandeirante e da Candangolândia em situação de vulnerabilidade. A eles são oferecidas aulas de dança, capoeira, caratê, teatro e música, entre outras atividades, no contraturno escolar.
Os benefícios dessas iniciativas do MPDFT vêm de recursos provenientes de medidas alternativas impostas a apenados que cometeram crimes de menor potencial ofensivo. Tudo é feito por meio de parcerias com instituições sociais. No caso do projeto liderado por Mauro, é a creche Casa da Mãe Preta do Brasil, no Park Way, que fornece o apoio necessário.
Os treinos de futebol ocorrem no campo sintético da Metropolitana, no Núcleo Bandeirante, às segundas, das 18h20 às 19h30, e aos sábados, das 10h às 11h30. As atividades já se encerraram neste ano, mas têm retorno marcado para 20 de janeiro de 2019, e as portas estão abertas para receber mais crianças e adolescentes.
“Os projetos são fruto de doações. Por exemplo, se uma pessoa comete delito de trânsito, paga fiança e tem penalidade convertida em benefício de prestação de serviço alternativo. O recurso então é destinado a instituições parceiras, que elaboram projetos sociais”, explica Áurea Rangel, servidora do Setor de Controle e Acompanhamento de Medidas Alternativas da Promotoria de Justiça do Núcleo Bandeirante.
Há algum tempo, o MPDFT apoia projetos que visam trazer cidadania para pessoas carentes. O importante é que tentamos transformar situações negativas em algo produtivo, benéfico para a sociedade que foi afetada pelo ilícito penal. Estou muito feliz com esses objetivos alcançados e, o mais importante, a possibilidade de reverter situações e mudar o rumo da vida de muitos
Diógenes Lourenço, promotor de Justiça
Como se tornar instituição parceira?
Se você representa instituição de atuação social, pública ou privada, e tem interesse em firmar parceria com o MPDFT, pode entrar em contato diretamente com o Setor de Medidas Alternativas da promotoria de Justiça da sua cidade. Caso o órgão trabalhe especificamente com a preservação do meio ambiente ou da ordem urbanística, procure o Setor de Investigação Social para Delitos de Meio Ambiente, Ordem Urbanística e Patrimônio Público (Setema).
A lista de todos os telefones no Distrito Federal está disponível no site do MPDFT.
Orlando CityEm 2013, o Orlando City foi comprado pelo empresário brasileiro Flávio Augusto da Silva. Dois anos depois, ingressou na MLS. O craque brasiliense Kaká, ídolo da Seleção Brasileira, do São Paulo e do Milan – clube pelo qual foi eleito o melhor jogador do mundo em 2007 –, é o atleta mais badalado que já defendeu a equipe (2014 a 2017).
Em março deste ano, a franquia da Flórida entrou para o grupo das equipes mais valiosas das Américas nos últimos anos, segundo a revista Forbes. Ao anunciar a venda de 8,63% de suas ações, atingiu US$ 490,5 milhões (R$ 1,62 bilhão à época) de valor de mercado.
Além de Brasília, o Orlando City tem franquias brasileiras no Rio de Janeiro (RJ), em Recife (PE) e Porto Alegre (RS). Na capital do país, há mais de 400 alunos.