Primeira infância em situação de risco terá lar temporário no DF
Programa da ONG Aconchego oferecerá alternativa aos abrigos para crianças vulneráveis. Iniciativa existe, com sucesso, em outros estados
atualizado
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Pedro não teve chance de crescer como outras crianças. Jamais foi amamentado e nunca conheceu o pai. Aos 5 anos, é pequeno para a idade e também está abaixo do peso indicado. Talita, 6, tem atraso na fala e demorou a andar. Luan, de apenas 1, não emite sons nem segue movimentos com os olhos.
Sem famílias estruturadas, eles começaram a vida acolhidos em abrigos. Experimentaram muito cedo a sensação de desamparo, não tinham braços para segurá-los logo após o choro, ninguém para ensiná-los com a devida atenção palavras, cores e sons. Vivem as consequências da falta de estímulo e afeto na primeira infância: fase entre zero e 6 anos.
Atualmente, 12.180 crianças nessa faixa etária são acolhidas por instituições no Brasil. Crescimento físico, amadurecimento cerebral, aquisição de movimentos, desenvolvimento da capacidade de aprendizado e iniciação social afetiva começam a partir das experiências nos primeiros anos de vida.
Por isso, o Marco Legal da Primeira Infância e a Política Nacional de Assistência Social recomendam como alternativa a essas situações o uso da política pública conhecida como “famílias acolhedoras”: pessoas dispostas a cuidar, alimentar e garantir toda a proteção dos pequenos enquanto o futuro deles é decidido (se voltam aos parentes ou seguem para adoção).
Existem projetos nesse formato espalhados pelo Brasil, há mais de 20 anos, com relatos de sucesso. Cascavel, no Paraná, praticamente extinguiu abrigos para crianças. Só agora o Distrito Federal implantará a iniciativa.
A ONG Aconchego venceu o processo seletivo aberto pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedest) e é responsável pela capacitação dos interessados.
“Não se trata de caridade ou preparação para adotar. É uma política pública. Faremos a capacitação das famílias em várias etapas e com muito cuidado. Haverá palestras, oficinas, visitas presenciais, consultas com psicólogos e assistentes sociais”, explica Julia Salvagni, psicóloga, mestre em direitos humanos e coordenadora do projeto. Famílias que estiverem na fila para adotar, por exemplo, não poderão participar da seleção.
A criança é responsabilidade de todos. Não pode ser abandonada à sorte ou ao azar. A pessoa bem-desenvolvida é boa para toda a sociedade
Anna Maria Chiesa, doutora em saúde
A intenção, segundo a Sedest, é fazer o Família Aconchegante funcionar ainda em 2018. Até lá, os pequenos seguem vivendo em lares coletivos. “Trata-se de uma medida de proteção. Nós trabalhamos para que crianças não precisem ser acolhidas, mas, infelizmente, o cenário do nosso país é outro”, afirma a coordenadora das unidades de acolhimento da Sedest, Stela Argolo.
A importância do afeto familiar para o desenvolvimento infantil é comprovada cientificamente, como ressalta Anna Maria Chiesa, doutora em saúde pública e especialista em desenvolvimento infantil da fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
“É uma descoberta recente da ciência na área de epigenética. O tipo de sentimento ao qual a criança é exposta nos primeiros anos cria sinapses que são base para o desenvolvimento cerebral”, diz.
Anna Maria cita um estudo de Charles Nelson, da Harvard Medical School, para reforçar a importância da iniciativa. “Aquela criança que vai para uma família acolhedora antes dos 2 anos tem mais chances de ter QI maior e menos dificuldades de aprendizado”, afirma.
Apenas dar comida e banho numa criança não garante o pleno desenvolvimento de todas as suas potencialidades
Anna Maria Chiesa, doutora em saúde
A coordenadora pedagógica do abrigo Nosso Lar, referência no Distrito Federal, Patrícia Braga, avalia o Famílias Acolhedoras como algo positivo, mas com ressalvas. “Será preciso acompanhar o processo muito de perto para garantir o sucesso da iniciativa. Vínculos formados dos zero aos 6 anos são muito fortes. As famílias não podem confundir isso com adoção”, afirma. Patrícia reforça, entretanto, que confia plenamente na ONG Aconchego para essa missão.
Esforços para oferecer o melhor
O Nosso Lar tem, atualmente, 25 crianças de até 6 anos acolhidas. A maioria é filha de usuários de drogas. O espaço conta com parceiros para proporcionar a elas cuidados médicos, atendimento com assistente social, dentista, psicólogo, prática de capoeira, brincadeiras e até massagem shantala para bebês. Também tem apoio do Programa de Estimulação Precoce da Secretaria de Educação.
“Mesmo com todo esse empenho, essas crianças não conseguem seguir os marcos tradicionais de desenvolvimento infantil. Essas metas se tornam um ideal a perseguir no nosso trabalho”, afirma Patrícia.
Saiba quais são os marcos do desenvolvimento infantil*, segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal:
*Vale ressaltar que cada criança tem seu histórico de desenvolvimento, e esses marcos servem como referência para acompanhá-la. Pequenos com amplas distorções precisam de uma análise especializada.
A cada 15 dias, um grupo de voluntários leva as crianças para passeios em circos, cinemas e centros culturais. Em uma dessas ocasiões, elas vestiram suas melhores roupas, fizeram fila e entraram num ônibus alugado, rumo a um mundo novo.
Pela primeira vez, aquele grupo pisou em um shopping. Foi à Hot Zone (a famosa Divertilândia), no ParkShopping. O pessoal do abrigo fez vaquinha para garantir os tíquetes. Para a surpresa dos organizadores do passeio, a maior atração do dia era gratuita: a escada rolante.
“Eles nunca tinham visto nada parecido, enxergam o mundo de um jeito muito particular. Cabe a nós apresentarmos a vida a elas”, ressalta Patrícia.
Serviço
Quer se candidatar como Família Aconchegante?
Fale com a ONG Aconchego:
Telefones: (61) 3964-5048 e (61) 3964-5049
E-mail: contatos@aconchegodf.org.br
Quer ajudar o abrigo Nosso Lar?
Acesse o link ou ligue para os telefones: (61) 3301-1120, (61) 3301-3244 ou (61) 98483-6854.