Preteridos: no DF, apenas 3,8% dos adotados em 2022 são adolescentes
As famílias que optam pela adoção de adolescentes maiores de 12 anos superam estigmas associados à adoção de pessoas mais velhas
atualizado
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“Família é de coração, não de sangue”. Esse pensamento levou a pedagoga Michele Amorim, 41 anos, a adotar uma adolescente. Com a jovem Rafaela, de 16 anos, a família dela – formada pelo marido, Ivan Barros, 48, e os dois filhos biológicos, Pedro e Gabriel – ficou completa.
Michele viu Rafaela por meio de um aplicativo de adoção. Como ela morava em Três Lagoas (Mato Grosso do Sul), os primeiros contatos foram por meio de conversas virtuais, até que a família decidiu conhecê-la ao vivo e a cores.
“Tem gente que idealiza, não é aquele amor que bate o olho na criança e já ama. É algo construído. A criança mais velha tem que querer aquela família também, porque senão não vai para a frente”, diz Michele.
A mãe conta ter demorou um tempo para que a filha se abrisse, pois ela não sentia confiança. “No abrigo ela viu muitas crianças sendo devolvidas. Então, ela tinha muito medo disso. Tanto é que no início ela tentava afrontar a gente e nos testava para ver se realmente queríamos ficar com ela”.
“No começo eu também não sabia o que significava pai e mãe, só fui entender isso com minha família adotiva. Me senti bastante acolhida e amada pelos meus pais. Além disso, aprendi muitos valores importantes, como boas maneiras, estudar, ser uma pessoa gentil e educada”, conta Rafaela.
Para a garota, a adoção representou uma oportunidade de ter uma vida melhor. Além disso, ela sentiu que novas portas se abriram. “Quero fazer medicina para um dia poder ajudar as pessoas e os meus pais. Psicologia também é outra opção. Desde pequena pensei que seria bom poder ajudar as pessoas a passarem por experiências como a minha”.
Michele é uma das poucas mães que optou pela adoção tardia, isto é, em fase mais avançada de desenvolvimento. Segundo a Vara da Infância e da Juventude do DF, do total de 53 adotados em 2022, apenas dois, o que representa 3,8%, são adolescentes maiores de 12 anos. Atualmente, 43 adolescentes estão em abrigos à espera de uma família.
Desafios
Segundo a psicóloga clínica e jurídica Ana Carla Domingues de Araújo, a maioria das pessoas prefere bebês ou crianças por acreditar que adotar jovens é mais desafiador.
“A nossa experiência mostra que grande parte delas tem a ideia pré-concebida de que os mais velhos são mais trabalhosas, já passaram por muitas situações, e por isso, a adaptação vai ser mais difícil. Às vezes, elas já vêm com algum hábito ou mania difícil de lidar”, explica Ana Carla.
De fato, os adolescentes já chegam ao novo lar com um conjunto de histórias, memórias e visões. “Eles têm lembranças dos pais biológicos, por isso, vão precisar passar pelo processo de luto, de desligamento da família biológica ao serem introduzidos na nova família”, aponta a especialista em convivência familiar e comunitária.
Ana Carla ainda destaca que eles podem ter passado por experiências traumáticas. “Muitos já experimentaram questões relacionadas a drogas, sexualidade, conflitos, dificuldades escolares ou de relacionamento, temas difíceis para as famílias lidarem. O maior desafio dos pais, portanto, é acolher essas histórias que eles trazem”.
A advogada e voluntária da ONG Aconchego, grupo de apoio à convivência familiar e comunitária, ressalta que a adoção tardia se diferencia por uma maior participação do adolescente, que precisa ser ouvido e concordar com todo o processo. “A adoção tardia exige um investimento maior por parte os pretendentes, que precisam se esforçar na formação do vínculo para que esse adolescente se sinta seguro e pertencente à família”.
Laço construído
O casal Marcos Passarela, 40 anos, e Bianca Vieira, 41 anos, já casaram com a certeza de que queriam formar uma família, seja por meio de uma gravidez ou da adoção. Após tentativas mal sucedidas de gerir um filho, eles decidiram adotar. Depois de adotarem um bebê de três meses, em 2020, eles quiseram expandir a família e acolheram mais três irmãos: Luca, Júlia e a mais velha, Paola.
“Como passamos pelos dois processos: adotar um bebê e crianças mais velhas, descobrimos que realmente existe uma diferença. Os mais velhos já vem com vícios e hábitos. A Paola era muito independente, tinha vontade de tomar conta da própria vida. No começo, foi difícil para ela aceitar que os pais que escolheriam por ela”, compara Bianca sobre as experiências.
Sendo assim, os pais contam que o estabelecimento de uma conexão com ela demandou um tempo. “Paola chegou arredia, nos vendo como inimigos, mas à medida que construímos uma relação, ela compreendeu que nós somos o pai e mãe dela dela”, afirma a professora.
Como Paola e os irmãos foram adotados durante a pandemia, a convivência dentro de casa foi mais intensa. “Isso deu um choque inicial, mas com o passar do tempo, com muita conversa, amor e estabelecimento de limites, conseguimos criar um laço. Sempre deixamos muito claro que estávamos dando oportunidades para que eles tivesse uma vida melhor, mas que eles precisavam agarrá-las”, comenta Bianca.
Marcos acredita que a principal estratégia para acolher adolescentes é tratá-los como se fossem filhos biológicos, ou seja, de forma natural. “Cuidar de alguém muitas vezes é dizer não. Hoje, a Paola entende que tudo não que damos a ela é por amor e zelo”.
Aprendizado constante
“No primeiro momento fiquei assustada. Achei ela muito grande. Mas a alegria dela me contagiou”, conta Josmária Madalena Lopes, 50 anos, sobre a primeira vez que viu a filha adotiva, Paula Beatriz, hoje com 18 anos.
Na época, a jovem tinha 12 anos de idade, quando foi escolhida, junto ao irmão de 10 anos, para integrar a família da empregada pública. Mãe solteira, Josmária sempre sonhou em ter uma menina, mas não pensava em uma adolescente como primeira opção. Ela conta que Paula veio de um lar desestruturado, e por isso, chegou com grande insegurança de sair sozinha.
“Eles conviveram bastante tempo com os pais biológicos. Por isso, são fiéis a esses pais, o que dificulta a abertura para um novo relacionamento. Mas, com o tempo, as coisas foram se acomodando”, afirma Josmária.
Para a empregada pública, o maior desafio é conciliar os valores dela aos dos filhos, que por terem crescido em outro lugar, aprenderam a assimilar o mundo de forma diferente. Contudo, Josmária aponta que as trocas e aprendizados são uma via de mão-dupla. “Há valores que, às vezes, não condizem com os meus. E neste momento é que faço a intervenção e procuro orientar como acredito. Há também visões que eles trazem, e que acho melhores que as minhas, e aí procuro aprender”.
Como adotar?
Qualquer pessoa com mais de 18 anos, casada ou solteira, independente da classe social, da religião ou da opção sexual pode adotar. “O que a lei exige é que os interessados demonstrem condições psicoemocionais para exercer a paternidade e a maternidade de forma responsável. O principal é que a pessoa ou casal comprove que podem proporcionar um lar amoroso e seguro para essa criança ou adolescente”, aponta a advogada Mabel Resende.
Ela ainda destaca que os tribunais brasileiros estão antenados na concepção atualizada de família que tem como base “o afeto, e como função, a busca da felicidade e o bom acolhimento dos seus integrantes”.
Para adotar é necessário, primeiro, que o interessado passe por um estudo psicossocial oferecido pela rede de proteção da criança e do adolescente, e depois, que participe de um grupo de apoio à adoção. “Após o cumprimento dessas etapas, o juiz vai dar uma sentença deferindo ou não a habilitação à adoção. Assim, ele é inserido no sistema nacional de adoção e pode acompanhar o local na fila de acordo com o perfil do filho escolhido”, detalha Mabel.
De acordo com a advogada, no primeiro momento, quando a pessoa ou o casal adotante encontra um perfil de criança ou adolescente compatível, é concedida uma guarda provisória. É só depois de 90 dias que o filho é adotado de forma definitiva.
Para receber esse novo membro familiar, a psicóloga Ana Carla recomenda que a família respeite as referências, preferências e necessidades dos filhos, independente da idade que tenham. “Eles levam objetos, roupas e memórias do passado que, às vezes, as famílias tendem a querer que eles deixem para trás. Porém, eles precisas manter aquilo para se sentirem acolhidos dentro daquela nova configuração familiar que se apresenta”, conclui.