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O que seria “acabar” com a PM: o debate polêmico da desmilitarização

Desembargador do TJGO defendeu o fim da PM no estado em momento de crise da corporação pelo país, acendendo debate da desmilitarização

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1 de 1 imagem colorida mostra batalhão da PMDF - Metrópoles - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

No começo de novembro, o desembargador Adriano Roberto Linhares, do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), gerou polêmica ao dizer que a Polícia Militar teria que “acabar”. Ao longo do mês, policiais militares foram alvo de críticas por atuações desproporcionais em várias unidades da federação. Dois casos foram emblemáticos: a execução de um cachorro dentro da casa de uma família no Distrito Federal e a omissão de uma PM fardada que se negou a ajudar um jovem negro ameaçado por uma arma de fogo (veja mais abaixo). Em cenário de crise das corporações pelo país, se reacende o debate da desmilitarização.

Ainda longe da realidade brasileira, o tema do fim da polícia na forma militar é cercado por desinformação. Nos últimos cinco anos, o termo “desmilitarização da polícia” nunca foi tão pesquisado no Google quanto no período entre 23 e 29 de outubro de 2022, por exemplo. Naquela data, eleitoral, as redes sociais foram tomadas por uma fake news de que a proposta de governo de Lula (PT) trazia a desmilitarização da PM, mas o documento que vinha sendo divulgado tinha apenas sugestões aprovadas em um encontro de direitos humanos do Partido dos Trabalhadores de 2021.

Antes de opinar sobre a desmilitarização ou não da corporação, especialistas defendem que é preciso combater as notícias falsas e produzir um debate responsável sobre formas de diminuir a letalidade e os abusos de policiais militares. Luciana Silva Garcia, professora de Direito, pesquisadora e membro do Instituto Prios de Políticas Públicas e Direitos Humanos, por exemplo, explica que desmilitarizar é diferente de extinguir as polícias.

“Significa transformá-la numa instituição civil. Num país com uma justiça de transição incompleta como o Brasil, após 20 anos de ditadura militar, pensar a polícia a partir de uma doutrina militar é encarar sua atuação como de defesa contra um inimigo a ser abatido. E, no caso do Brasil, o ‘inimigo interno’ é a população negra, jovem e periférica, que é quase sempre associada à criminalidade”, avalia.

 

 

A professora e pesquisadora cita ainda o antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares, que lembra que a estrutura militar da polícia “não combina com os problemas e desafios” de diferentes situações. “Porque o policial que atua na rua precisa aprender a dialogar, pensar e decidir, e não apenas cumprir ordens como a hierarquia militar manda.”

Outro ponto levantado por Luciana é a falta de transparência nos dados relacionados à segurança pública, principalmente em relação às ações da Polícia Militar, que obrigam a sociedade civil e a academia a coletar e analisar informações. “Como exemplo, temos o importante trabalho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FMSP), que produz o Anuário Brasileiro da Segurança Pública. […] Conforme dados do FBSP, 83% das pessoas que morrem em decorrência de intervenções policiais são negras e 45% entre 18 a 24 anos de idade.”

Viabilização dificultada

Porém, mesmo com especialistas em segurança pública avançando em debates e propostas, na avaliação de que mudanças precisam ser feitas, chegar ao ponto da desmilitarização da PM no Brasil é um cenário ainda muito distante hoje. Luciana Silva ressalta que, recentemente, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei n° 3045/2022, que institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares.

“O texto foi aprovado no Senado em regime de urgência, ou seja, sem tempo para um debate mais aprofundado. Uma das previsões do PL é a ouvidoria da polícia ser diretamente subordinada ao comandante-geral. Ou seja, um órgão fundamental para recebimento de denúncias contra os integrantes da polícia que cometam ilegalidades ficar sob a responsabilidade de um membro da corporação. É a polícia se fechando mais e mais aos civis. O PL está para sanção presidencial e espero que este artigo seja vetado, dentre outros que também reforçam este cenário.”

No último dia 13, o próprio Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania emitiu nota manifestando “preocupação com dispositivos presentes na atual redação”. De acordo com o texto da pasta federal, há, por exemplo, “reforço da lógica militarista”, “enfraquecimento dos governadores” e “limitação da participação de mulheres nas forças”.

“O atual art. 28 do projeto estabelece uma série de atribuições para a Inspetoria Geral das Polícias Militares, integrante do Exército, reforçando o vínculo das polícias com as Forças Armadas e desconsiderando a Lei do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) no que diz respeito ao registro de dados e orientação técnica, por exemplo. O mesmo ocorre em relação aos dispositivos referentes à formação das polícias”, traz uma das críticas presentes na nota do Ministério.

Para Carolina Ricardo, advogada, socióloga e diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, a aprovação da lei orgânica mostra que, hoje em dia, não há um campo político propício para o debate. “Não houve debate da sociedade civil da forma que poderia ter havido. Então, acho que a gente precisa discutir a reforma da polícia no modelo que ela está. E aí, brigar por muita coisa. Por transparência, por protocolo, por prestação de contas, por uma formação mais ampla, com participação da sociedade civil”, exemplifica.

 

“Desmilitarizar a segurança pública”

A especialista ainda avalia que o debate sobre desmilitarização precisaria começar com a definição desse conceito. “Porque essa ideia de desmilitarizar é um pacote gigantesco. E acho que quando a gente começa uma discussão sem dizer exatamente o que a gente quer, a gente já perde o debate de antemão. A nossa polícia militar hoje, por exemplo, é vinculada às Forças Armadas, aos Exércitos, mas tem quase um duplo comando, porque também é vinculada aos Estados, aos governadores. Seria, então, desvincular da Inspetoria Geral do Exército e mantê-la submetida apenas ao governador de estado? É difícil, porque podem ser muitas coisas.”

Carolina opina que o contexto brasileiro de hoje torna inviável, pelo menos a curto prazo, deixar de ter uma PM, mas acredita que a Polícia Militar “pode ser menos militarizada e menos violenta”. “Por isso eu acho que é importante falar de desmilitarizar a segurança pública como um todo.”

Para isso, a especialista defende como primeiro ponto a mudança de concepção atual de segurança que prioriza ações ostensivas, que, geralmente, são feitas pela PM. “Essa lógica de enfrentamento me parece, na minha concepção, que compõe esse militarismo, essa ideia de enfrentar o inimigo a todo custo. E essa lógica é muito ruim. Porque ela mata muita gente, mesmo que sejam pessoas eventualmente criminosas, já que a gente espera que a polícia prenda, e não mate; ela apena enxuga gelo, porque ela não ataca a estrutura das organizações criminosos; quando ela é feita em comunidades, ela mata muito inocente; e ela é muito custosa para o país.”

E Carolina ressalta que quem morre nessas ações são as pessoas pobres, pretas e periféricas. “Dito isso, o que a gente precisa fazer? A gente precisa investir e fortalecer uma polícia de investigação. Então, a Polícia Civil precisa receber investimentos para conseguir investigar mais a fundo. A gente precisa ter polícias militares e civis que dialoguem, que trabalhem juntas. Precisa investir em outras formas de fazer segurança, como políticas de prevenção”, cita.

Ela finaliza levantando ainda o debate da profissionalização da PM para que ela seja menos violenta, tenha menos casos de vitimização de policiais e mais melhorias. “E, para isso, temos protocolos de uso da força, câmeras corporais, controle externo via ouvidoria de polícia, Ministério Público fazendo controle externo”, diz.

Câmeras nos uniformes da PM

Citado por Carolina, o monitoramento das ações policiais com câmeras patina no DF. Em junho deste ano, o Governo do Distrito Federal (GDF) anunciou que havia iniciado o processo para contratação do sistema nos uniformes dos policiais militares. Naquela data, o então sub e atual comandante-geral da PMDF, Adão Teixeira de Macedo, informou que a corporação iria instalar 1.978 bodycams nos uniformes ainda em 2023.

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Jovem leva mata-leão de PMs em ônibus e MPDFT cobra investigação

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Porém, em 20 de outubro, a PMDF suspendeu, por tempo indeterminado, a licitação no valor de R$ 21 milhões referente à compra de câmeras corporais. A corporação justificou dizendo que suspendeu após as empresas interessadas na licitação enviarem um “significativo volume de solicitações de esclarecimentos e impugnações”, com “curto prazo disponível para a realização do processo licitatório”. Na nota, a Polícia Militar ainda afirmou que a suspensão era “uma demonstração do compromisso com a busca da máxima transparência”.

Na avaliação de Jonas Sales, advogado membro da Comissão de Igualdade Racial da Seccional do DF da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), para problemas estruturais, como é a violência policial contra a população mais vulnerável, as medidas de combate devem ser igualmente estruturais, e a obrigatoriedade do uso de câmeras em todo e qualquer policial militar, de maneira ininterrupta, seria um eixo central.

“Não há esta ou aquela atitude que, por si só, terá a capacidade de mudar um sistema e uma cultura de violência secular por parte da Polícia Militar. Mas alguns eixos são centrais no meu modo de ver, para que se possa ter efeitos reais na redução da violência policial, como o uso de câmeras, o estudo, tanto de direitos humanos quanto de letramento racial, e a punição exemplar, já que são militares e seguem em diversos aspectos a hierarquia do Exército.”

Casos polêmicos

Dados da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF (CLDF), presidida pelo deputado distrital Fábio Felix (PSol), mostram, neste ano, um número de casos de violência policial quase duas vezes maior do que no ano passado. Até o mês de novembro, foram 70 casos, dado superior ao recebido em todo o ano de 2022, de 40 casos.

Nesses quantitativos, a maioria das denúncias é contra a PMDF, como excesso de violência no Carnaval, em fevereiro; chute no rosto de homem abordado no Guará, em março; agressões de um tenente-coronel contra um motoboy, no mesmo mês; agressão contra idoso de 73 anos em São Sebastião, em maio; abordagens truculentas na Rodoviária do Plano Piloto e mais.

 

Neste mês de novembro, casos polêmicos emblemáticos tomaram o noticiário nacional no DF, em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo. Dia 9, policiais militares entraram, sem autorização dos donos, em uma casa de Brasília, buscando por um suspeito de tráfico de drogas, e executaram o cachorro da família. Nem o indivíduo procurado nem qualquer substância ilegal foram encontrados no local.

Dia 12, uma policial militar fardada se negou a ajudar um jovem negro que estava sob a mira de uma arma de fogo em São Paulo. Ela aparece em um vídeo, revelado pelo site Ponte Jornalismo, se omitindo, dizendo que estava de folga e até chutando o rapaz quando ele se aproxima. Dia 15, um PM acabou preso em flagrante após atirar e matar um outro policial militar no Rio de Janeiro. O assassinato aconteceu após discussão em um bar dentro de um condomínio residencial.

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