PM doa e fecha postos comunitários. População reclama de insegurança
Cerca de 35% das unidades estão sucateadas e 26% foram doadas. Polícia manterá em funcionamento apenas as localizadas em pontos estratégicos
atualizado
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Dentro do kinder ovo de aço, pintado coincidentemente de marrom por fora e branco por dentro, os acordes inseguros dos estudantes de baixo elétrico ganham uma projeção que a sala de aula de alvenaria não consegue proporcionar. “Aqui tem uma acústica diferente”, observa o professor de música Adonias Alcântara, 48 anos. As aulas são realizadas dentro de um antigo posto comunitário de segurança (PCS), que costumava abrigar policiais militares. O “milagre” da acústica perfeita se deve a um simples fato: os módulos, que custaram em média R$ 150 mil cada aos cofres públicos, foram construídos com isolamento termo-acústico em isopor.
Quinze deles foram doados em dezembro do ano passado à Escola de Música de Brasília e, após algumas adaptações, agora servem como sala de aula e de estudos aos quase três mil alunos de 36 cursos variados, divididos em três turnos diferentes. “O melhor é essa ação cidadã de reaproveitamento do que é público”, diz Edilene Abreu, diretora da escola.
A reutilização dos Postos Comunitários de Segurança (PCSs) para servir à comunidade em atividades de cunho social e cultural foi a solução encontrada pela Polícia Militar para dar conta de um passivo com a população. Os R$ 18 milhões gastos em dinheiro público para a construção das 131 unidades foram para o ralo quando 46 delas sofreram depredações e incêndios. Somente neste ano,três postos foram danificados, segundo informações da assessoria da corporação.Além do prejuízo do vandalismo, muitos postos foram simplesmente desativados, tornando-se abandonados e tomados pelo crime. Dos que restaram em boas condições, segundo a PMDF, 15 foram repassados à Escola de Música, 10 estão em processo de transferência para a Secretaria de Mobilidade, cinco para a Secretaria de Educação e quatro serão enviados à Secretaria de Segurança Pública e da Paz Social.
O Decreto 16.109/94 é a base que regulamenta as transferências, que são feitas pelo Departamento de Patrimônio, Manutenção e Transporte (DPMT) da Polícia Militar mediante Termo de Movimentação de Bem Patrimonial.
As unidades doadas à segurança pública estão localizadas em Ceilândia, Samambaia, Recanto das Emas e Asa Sul. Elas serão destinadas a atividades de redução da violência voltadas ao público LGBT, pessoas com deficiência e pessoas em situação de rua. Um chamamento de propostas foi publicado em dezembro de 2016 no Diário Oficial do Distrito Federal e, desde fevereiro, a Subsecretaria de Segurança Cidadã analisa as 40 sugestões de projetos recebidas.
Biblioteca e sede de ONG
Além das doações às secretarias, os postos também estão sendo autorizados para utilização por administrações regionais e iniciativas do terceiro setor. No Riacho Fundo II, um PCS duplo que funcionava na QN 8D e tinha sido alvo de três tentativas de incêndio foi transformado em biblioteca pública.
Com R$ 35 mil arrecadados em doações feitas por servidores, empresários e comunidade, o espaço ganhou cara nova com direito a reforma interna, troca de pintura e novo mobiliário. O valor está bem abaixo dos R$ 250 mil que o governo anunciou que gastaria para reformar uma única unidade para doação. Enquanto não sai a liberação para a inauguração do espaço, a administração começou uma campanha de doação de livros. Interessados em ajudar devem ligar no (61) 3333-9620.
Em Planaltina, onde todos os cinco PCSs estão desativados, há nove sugestões enviadas pela população à administração regional para transformá-los em bibliotecas, casas de cultura, salas multiuso e sedes de organizações não governamentais (ONGs). Segundo a administração, as propostas foram repassadas à Polícia Militar e aguardam resposta.
Já em Samambaia Norte, a ONG Força Nacional de Proteção Ambiental espera, há quatro meses, receber uma autorização formal da PMDF para funcionar no posto comunitário das quadras 206/406. A instituição atua em parceria com a Polícia Militar Ambiental e o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) no flagrante de crimes contra a natureza, além de trabalhar com educação ambiental em escolas.
Mesmo sem documentação, a sede da instituição já foi transferida para o posto, dividindo o espaço com dois artistas plásticos que expõem esculturas de material reciclado e ferragens. Com medo de ataques, os voluntários, a maioria militares aposentados, revezam-se em turnos para vigiar o kinder ovo 24 horas por dia.
Ataques
Desde que foram inaugurados pelo governo Arruda, em 2008, um terço dos postinhos comunitários foi alvo de incêndios intencionais e depredações. Procurado pela reportagem, o ex-governador preferiu não se pronunciar sobre o assunto.
Mesmo quando são ocupados por projetos sociais mais inclusivos e democráticos, os módulos não ficam livres de ataques. O projeto BiciCentro, um bicicletário que funcionava em um PCS na Estrutural, teve de ser cancelado dois meses depois da inauguração: a sede foi queimada no ano passado.
Walisson de Souza, 21 anos, educador de uma das ONGs responsáveis pelo projeto, vê as depredações sob uma perspectiva social, e não somente criminosa. Ele lamenta que a iniciativa não tenha tido tempo suficiente para se tornar uma referência para a comunidade.
O pessoal tem dificuldade de perceber ações de cunho positivo, ainda mais dentro de um posto policial. Segurança Pública aqui na Estrutural significa você ser revistado o tempo todo. A revolta vem daí
Walisson de Souza, educador do Coletivo da Cidade
Insegurança
Com 35% das unidades sucateadas e 26% doadas, a PMDF decidiu manter apenas os PCSs localizados em pontos considerados estratégicos. Com isso, a maior parte da população se sente abandonada e reclama de que não houve comunicação sobre o fechamento dos postos.
Virgílio Araújo, presidente do Conselho de Segurança Comunitária (Conseg) de Sobradinho II – região onde um dos PCSs foi doado à Escola de Música e outros dois foram incendiados – pede mais atenção à população.
“Hoje estamos sem postos e o comando da PM que atende a nossa região não tem policiais suficientes”, reclama. Virgílio defende que as unidades sejam doadas somente quando a comunidade apontar que não precisa delas.
Para lidar com a insegurança nas regiões que estão sem postos, a Polícia Militar adotou bases móveis. A falta de efetivo tem sido combatida com a adoção do serviço “voluntário” gratificado: quando policiais de folga são requisitados para trabalhar voluntariamente, mas de forma remunerada.
O posto causa uma falsa sensação de segurança. É mais efetivo ter policiamento móvel do que fixo
Eduardo Conde, comandante responsável pelo policiamento na região do Paranoá, Jardim Botânico e São Sebastião
O especialista em segurança pública George Felipe Dantas aprova a troca dos PCSs pela intensificação do policiamento móvel. Para ele, com exceção de locais onde há muito movimento de público, o conceito de posto comunitário não é sustentável nem do ponto de vista estratégico nem de efetivo policial. “Parar um PM em um lugar gera um impacto financeiro que não se justifica, a não ser pela alta demanda ou pela excepcionalidade de um local”, avalia Dantas.