“Peço a Deus que não chova”. No DF, 2 mil vivem em áreas de alto risco
Estudo do governo mapeou 525 imóveis em locais com perigos geológicos. Ao todo, o DF tem 22 áreas de risco
atualizado
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A apenas 27 quilômetros da planejada Brasília, casas se amontoam e se equilibram em penhascos e declives. Na Vila Rabelo, em Sobradinho II, moram pessoas em situação de maior risco do Distrito Federal, segundo levantamento do governo federal, feito pelo Serviço Geológico do Brasil, vinculado ao Ministério de Minas e Energia.
O estudo mapeou apenas as áreas de “risco alto” e “risco muito alto”. Nesse cenário assustador, a capital do país tem 2,1 mil pessoas vivendo neste tipo de situação. São 525 imóveis em locais com perigos geológicos. Ao todo, o DF tem 22 áreas de risco.
O Metrópoles visitou quatro dessas áreas, nas regiões administrativas de Sobradinho II e Fercal, e conversou com moradores que se arriscam nessas localidades. Para eles, a chegada das chuvas castiga muito mais do que toda a seca brasiliense. Afinal, sobrevivem nas casas que têm para morar.
“Peço a Deus que não chova”, conta a diarista Janilda de Moura Aguiar, 49 anos. As preces, no entanto, não têm sido atendidas. Em agosto, Janilda viu a casa ser inundada ao escoar toda a água da chuva e da rua. Para drenagem, Janilda tem um buraco no chão e na parede. Sem que nenhum familiar conseguisse dormir, a diarista escutava o ronco de um rio margear a cama.
O mês que assustou Janilda foi apenas uma prévia do que está por vir. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a primeira semana de setembro já apresentou mais chuva do que a média para o mês, com 40.8 milímetros registrados até dia 8, enquanto o esperado para os 30 dias é de 38 mm.
Segundo a meteorologista Naiane Araujo, a tendência é de pancadas de chuva nos próximos dias. “Estamos em um período de transição, que é a primavera. É um período de alta temperatura e umidade, que resulta em chuva de curta duração, mas muito intensa”, informa a especialista.
“Pode ser o calor que for, que eu só consigo pedir para não chover. Vejo uma nuvem e já fico em pânico. A água da rua toda desemboca na minha casa”, completa Janilda. “Tenho medo. Me sinto uma fracassada e não desejo isso para a pior pessoa do mundo”, declara Janilda. A piauiense trocou um lote que tinha pela casa na beira da encosta.
“Eu não conseguia construir nada no lote e ainda pagar o aluguel. Então vendi para ter essa casa que tinha dois cômodos e pensei que no dinheirinho que entrasse ia para aumentar e melhorar”, detalha. A diarista mora na quadra 4 da Vila Rabelo 1. Segundo o levantamento do governo federal, a área apresenta erosão com deslizamentos planares.
“A situação é agravada pela ausência de drenagem urbana adequada que se concentra em pontos de lançamento causando avanço de erosão se aproximando das bases da moradia”, esmiúça o estudo. No local, foram identificadas 15 casas e 60 pessoas em risco.
A recomendação do governo federal é a remoção definitiva de moradias mais críticas. Entre elas, a casa de Janilda está assinalada. Apesar de o estudo ter sido divulgado em janeiro deste ano com os alertas, a diarista reside no local. Para conter as erosões, vizinhos se organizaram e compraram telhas e material de construção tentando impedir as erosões.
“Gastamos R$ 3,5 mil para colocar as telhas e fazer escoamento por conta própria”, disse a diarista Roseane da Silva, 43 anos, vizinha de Janilda. “Moradores de forma errônea descartam entulhos na erosão como forma paliativa de deter seu avanço”, conforme consta em documento.
Roseane mora em uma das pontas do morro há 20 anos, mas disse que nunca teve problema com a chuva e que se sente segura no local, apesar dos alertas da Defesa Civil.
“Ano passado veio uma mulher da Defesa Civil, passei foi raiva. Ela veio aí e disse que era para a gente sair e podia cair tudo. Nunca caiu nada, não vai ser agora. E depois, vou para onde?”, revolta-se Roseane. Para ela, é inviável sair do local que mora e que criou os filhos.
“A casa toda treme”
Na outra ponta do morro, a dona de casa Iraneide Galdino de Sousa, 33, também está em risco. Há três meses habita de aluguel em um contrato de ‘boca’ em uma casa que se equilibra em ribanceira. Amamentando a filha de dois anos, ela disse que só nessas primeiras chuvas já tem medo de continuar morando no local. “A casa toda treme”, comentou.
“A gente precisava de um lugar para morar e aqui foi tranquilo de alugar, só com a chuva que entrou em casa ficamos assustados”, disse. Ela alega que quer mudar, mas é uma casa com três quartos por R$ 500 ao mês, sem precisar de documentação para locação. As condições financeiras levam a família a morar na encosta.
“De frente para o abismo”
Em uma casa de 25 metros quadrados de madeira também na Vila Rabelo, Carla Sousa, 59 anos, mora no que ela mesma define como “de frente para o abismo”. A moradia fica na beira de um declive, onde ela cozinha à álcool porque sempre roubam o gás.
Carla é uma mulher trans que teve a perna amputada em 2014 após fortes cãibras. Na porta da casa, só cascalho e a principal queixa é de abandono de serviços públicos. “A gente aqui é muito abandonado, não há um tratamento de esgoto, saneamento, nada”, comenta.
O estudo federal sobre a situação do DF ressalta que a falta de infraestrutura piora a situação, como a ausência de drenagem.
Estágios de negação
A reportagem foi em outro trecho na Vila Rabelo 2. A segunda com riscos “muito altos” conforme foi classificada no levantamento. No entanto, moradores não quiseram dar entrevista e disseram que não havia problema nenhum, que não moravam em local perigoso.
Da mesma forma, moradores na quadra 4 da Fercal, na Rua das Palmeiras. O Metrópoles foi em três casas da rua que foram classificadas com riscos altos, inclusive com as fotos das residências nos relatórios, mas moradores disseram que se sentem seguros e que não há problema quanto ao risco.
“Vira e mexe a Defesa Civil vem aqui, falam das pedras, mas aqui eu tenho uma estrutura boa. Não acho que vai cair não”, comenta uma moradora que não quis se identificar.
Vizinha dela, Patrícia Alves, 46 anos, destacou a característica rochosa do terreno. “A gente sempre viveu aqui. Às vezes a grota enche, mas coisa normal”, explica. Patrícia conta que mora no local há mais de duas décadas e que o pai, antes de morrer de Covid, foi um dos primeiros a morar no lugar.
Atualmente, ela mora com o filho em casa e os vizinhos são parentes. A rua, que o relatório do governo federal aponta desbarracamentos e quedas de muro, é a moradia de sete crianças. Os netos de Patrícia.
“Como agravante, há o lançamento de muitas águas servidas na encosta, presença de fossas e ausência de drenagens urbanas adequadas nas ruas, sendo direcionados de forma improvisada para a encosta”, consta no texto.
“A grande maioria das pessoas que mora nas áreas de risco, elas não gostariam de morar nas áreas de risco ou não conhecem, não têm a percepção do risco. Isso é muito comum também”, explica o coordenador-executivo do mapeamento das áreas de risco, do Serviço Geológico do Brasil, o pesquisador Julio Cesar Lana.
“Muitas pessoas têm a consciência de que a área é de risco, mas não têm condição de sair. Outras pessoas acham que é seguro morar naquelas áreas porque estão lá há 30 anos e nunca aconteceu nenhum tipo de desastre”, completa.
“Então, elas não têm a percepção do risco e não sabem que o risco é a possibilidade de ocorrência. Pode ocorrer hoje, pode ocorrer amanhã, pode ocorrer daqui a um ano, pode ocorrer daqui a 10 anos”, justifica
Diagnóstico
De acordo com o pesquisador, o mapeamento constitui no primeiro diagnóstico para prevenção de desastres. “A partir do momento que você identifica e caracteriza uma área de risco, diversas instituições do poder público devem atuar de maneira preventiva”, conclui.
A Defesa Civil do Distrito Federal informou que foram mapeadas 104 áreas de risco em todo Distrito Federal e que o documento foi entregue à Secretaria de Governo do Distrito Federal para orientar os trabalhos das equipes técnicas. Segundo a subsecretaria de Segurança Pública, o monitoramento é feito principalmente em período de chuvas.
“São monitoradas locais que tenham declive acentuado, erosões, que sejam próximos a córregos e demais cursos d’água, com precariedade de drenagem de sistemas de drenagem de águas pluviais e ou de saneamento básico, que tenham fragilidades construtivas das edificações, que apresentem acúmulo de resíduos sólidos, como entulho e restos de obras, entre outros problemas”, informou em nota.
Também em nota, o Governo do Distrito Federal informou adotar medidas preparatórias e preventivas de forma a mitigar possíveis transtornos em decorrência do período chuvoso. No entanto, não informaram quais medidas mesmo com as 104 áreas mapeadas.
A Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab) informou ainda que existem projetos destinados a acomodar e realocar a população de área de risco.
Segundo nota, o maior campo para esse projeto é no Tamanduá (Recanto das Emas). Também serão destinadas algumas unidades no Sol Nascente. Não foram especificadas quantas unidades.