PCDF ouve 10 pessoas em denúncias contra freis por abuso sexual: “Mandou vídeo pelado”
Depoimentos apontam casos cometidos contra cerimoniários, rapazes e moças que ajudam na celebração das missas em uma paróquia de Ceilândia
atualizado
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Ao menos 10 pessoas procuraram a Polícia Civil do Distrito Federal para denunciar casos de abusos sexuais supostamente cometidos por freis em uma paróquia de Ceilândia, no Distrito Federal. As testemunhas e possíveis vítimas foram ouvidas na 19ª Delegacia de Polícia (P Norte), em uma investigação que permanece em caráter sigiloso devido à delicadeza dos fatos narrados. Os relatos complexos e o grande número de depoimentos obrigaram a unidade policial a desmembrar as análises em oito casos.
As investigações apontam abusos supostamente cometidos contra cerimoniários, rapazes e moças que ajudam na celebração das missas. No altar, eles exercem função semelhante à dos coroinhas.
O caso veio à tona após publicações feitas em redes sociais. Nas postagens, fiéis expuseram prints de supostas conversas dos freis com os seus subordinados pela ordem hierárquica da igreja. Nos diálogos, nudes, filmes pornográficos, mensagens invasivas e de assédio.
Dois padres da Paróquia dos Evangelistas São Marcos e São Lucas, em Ceilândia, foram orientados a prestar depoimentos. Um deles registrou ocorrência na mesma delegacia, por calúnia e difamação.
Em 12 de julho, o Metrópoles publicou uma reportagem na qual a paróquia em questão se pronunciou sobre o caso. Em nota, a instituição disse que as denúncias serão apuradas. No Facebook, as autoridades eclesiásticas se solidarizaram com as famílias das possíveis vítimas e afirmaram que tomarão as medidas necessárias.
A 19ª Delegacia de Polícia (P Norte) abriu investigação. Em um processo sigiloso, o delegado-chefe em exercício, Sérgio Bautzer, dividiu os relatos para que ele sejam analisados separadamente.
“As narrativas são de fatos antigos, ocorridos entre os anos de 2015 e 2018. Para dar continuidade às investigações, é preciso olhar a lei da época de ocorrência de tais fatos. Eles podem representar uma simples contravenção penal ou um crime hediondo”, disse ao Metrópoles.
Os oito casos serão tratados de maneira isolada. “Aguardamos a vinda dos freis e cerimoniários para esclarecimentos. Como o assunto envolve também violência contra a mulher, alguns procedimentos investigatórios serão encaminhados à Delegacia da Mulher 2. Cinco casos serão encaminhados à Deam 2 e só três permanecerão nesta circunscricional”, ressaltou Bautzer.
A autoridade pede que as pessoas parem de compartilhar os prints dos ocorridos para evitar a revitimização dos ofendidos.
As alegações da vítimas
Desde 12 de julho, a reportagem do Metrópoles vem tentando conversar tanto com as possíveis vítimas quanto com os dois freis acusados. A pedido das partes, os nomes dos envolvidos não serão divulgados. Nem dos freis, nem das vítimas.
A mãe de uma das vítimas conversou com a reportagem. Ela relatou que os supostos assédios ocorreram nos anos de 2017 e 2018, quando o filho tinha 17 anos. “Ele mandou foto com os órgãos genitais de fora, vídeo pelado. Deu dinheiro para o meu filho. Ficava ligando, pedindo para ele ficar pelado”, afirmou a mulher.
Na época, o jovem não teve coragem de denunciar. Ele era cerimoniário da paróquia e frequentava bastante a igreja.
A mãe do rapaz disse que chegou a mandar mensagens para o frei quando o caso foi denunciado pelo Metrópoles, com sentimento de revolta. “Meu filho cresceu sem pai, como você teve coragem de fazer isso com ele? Era feliz e tranquila porque ele estava na igreja, servindo”, disse ao frei por Whatsapp. Ela nunca obteve resposta.
Suposto Assédio
Eduardo* também conversou com a reportagem. Ele diz que foi assediado sexualmente por um dos freis há 5 anos.
O jovem, na época com 19 anos, foi paroquiano da igreja Nossa Senhora Imaculada Conceição, no Novo Gama (GO), onde o frade atuava como vigário. Conta ainda ter sofrido assédio várias vezes por parte do líder religioso – segundo Eduardo*, o acusado chegou a falar que abandonaria o sacerdócio para se casar com ele.
“A gente tinha uma certa proximidade. Eu acreditava que ele era um ser humano normal, mas, depois de muito convívio, vi que não. Percebi que ele não passa de um maníaco. Ele começou a dar em cima de mim, falou diversas vezes que queria casar comigo, que largava a batina para viver comigo. Essas condutas todas me fizeram, hoje, não ser mais católico. Eu tive um trauma psicológico muito grande, um abalo muito grande na minha fé, questionei muito sobre Deus”, contou.
Os assédios teriam acontecido tanto em redes sociais, durante troca de conversas no WhatsApp ou no Facebook, por exemplo, quanto pessoalmente. Eduardo* relembra de quando, após as missas dominicais, “reunia a galera” para ir lanchar em alguma pizzaria. Na volta, o jovem era sempre um dos últimos a ser deixado em casa. “Era quando ele soltava umas ‘merdas’ desse tipo”, completou.
“A princípio, levei na brincadeira, mas depois eu vi que era sério. Chegou um momento que eu falei que não gostava desse tipo de coisa, mas ele sempre dizia que era brincadeira, mas não era. Tinha momentos que ele sentia ciúmes de mim. Eu questionei: ‘Pô, bicho, esse negócio está ficando sério’, mas ele é muito cínico e dizia: ‘É brincadeira, é porque eu te amo'”, relembra o jovem.
“Foi uma coisa terrível, parecia uma namorada apaixonada. Foi aí que eu fiquei mais assustado, porque a gente não espera isso, ainda mais vindo de um frade”, comentou.
Arquivamento
O jovem delatou o caso à polícia do Novo Gama. Ele e outros dois fiéis fizeram a denúncia, mas o caso foi arquivado.
Há um registro de Boletim de Ocorrência, em 11 de abril de 2014, feito na DP do Entorno, para “averiguação de procedência de informações”. A polícia ouviu os denunciantes, que alegavam ter sofrido assédio de um frei.
Na época, os jovens tinham 17, 18 e 20 anos. A autoridade policial concluiu, após ouvir os envolvidos no boletim, que não havia tipicidade penal e, por isso, não instaurou inquérito. O entendimento foi seguido pelo Ministério Público do Goiás, que se manifestou pelo arquivamento e enviou o procedimento para o Poder Judiciário.
Outra possível vítima foi procurada pelo Metrópoles, mas disse que já fazia muito tempo e não “queria lembrar” do ocorrido.
Eduardo* revelou que a Polícia Civil acatou o processo, que foi arquivado pelo Ministério Público por falta de provas. Nesse meio-tempo, o frei foi substituído. Os frades têm a tradição de trocar de paróquia a cada quatro anos.
“E a história pipocou lá [na paróquia], virou um bafafá danado. Realmente, o que eu temia aconteceu: a gente ficou muito mal visto, o povo pegava muito no pé e falava que a gente era o demônio. Com isso se vê o tanto que a gente sofreu, e são sequelas que eu carrego comigo até hoje”, frisa a suposta vítima.
“Sempre fui um caro muito durão, nesse sentido, sou heterossexual, então nunca dei espaço. […] O problema é ser frade e ter esse tipo de conduta. Já é errado ser frade e dar em cima de uma mulher, imagina de crianças, de adolescentes, de homens… Isso é demoníaco, fora do real”, dispara o ex-paroquiano, que hoje tem 26 anos.
Eduardo* abandonou o catolicismo. Ele diz não acreditar mais em religião. O jovem procurou outros sacerdotes na época, mas conta que não foi compreendido por nenhum deles, que ignoraram o caso. “Isso tudo mexeu comigo. Psicologicamente, eu não tive estrutura para manter a minha fé, para manter a minha crença naquilo. Isso me deixou muito mal, muito mal mesmo”, afirma.
Em prints, a reportagem também visualizou denúncias de meninas e mulheres. Os relatos apontam que o almoxarifado da igreja era usado para cometer os abusos. Alguns desses crimes também teriam, supostamente, ocorrido em um lugar considerado como sagrado pela igreja e por fiéis, durante gravação de música de um dos freis.
Os dois freis foram procurados pela reportagem. Um deles não respondeu as ligações. O outro atendeu, ouviu o pedido para prestar esclarecimento sobre as acusações e disse: “Só um minutinho, por gentileza, só um minutinho”. Nesse instante, a ligação “caiu”. Desde então, ignorou as chamadas, além de não ter retornado o contato. O espaço segue aberto.
A reportagem entrou em contato com a advogada que acompanha os freis, Márcia Teixeira, e ela informou que só comentará o caso depois de os seus clientes serem ouvidos. “Ainda não tivemos conhecimento das supostas denúncias”, afirmou.