“Parece perseguição”, desabafa zelador da Colina sobre ação de despejo
Professores, servidores e estudantes apoiam zeladores que moram em imóveis da Asa Norte e são alvo de pedidos para reintegração de posse
atualizado
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Depois de o Ministério Público Federal (MPF) recomendar à Universidade de Brasília (UnB) que entrasse com ações judiciais para reintegração de posse de 11 imóveis ocupados por zeladores nas quadras 205 e 206 da Asa Norte e na área da Colina, professores, servidores da instituição de ensino superior e estudantes que moram na região acreditam que a situação ainda pode ser revertida e regularizada.
Nessa quarta-feira (10/7), o Metrópoles ouviu alguns dos zeladores afetados e constatou que muitos moram nos imóveis há mais de três décadas. Eles construíram famílias, vínculos afetivos com a comunidade e não têm casas próprias, o que os deixa sem ter para onde ir caso sejam despejados.
Francisco Borges, 53 anos, trabalha no Bloco H da Colina desde 1997 e mora no prédio desde 2011. Natural do Piauí, o zelador constituiu família no Distrito Federal e divide o imóvel no térreo do edifício com o filho de 29 anos, que tem deficiência, e a esposa.
“Trabalhamos aqui há muito tempo, prestando serviço para a comunidade. A questão não é sair, é a forma como tudo tem acontecido, sem prazo, como se tivéssemos invadido, sem permissão. Pagamos nossa conta de luz individual, tudo direitinho. A contrapartida é a zeladoria que prestamos todos esses anos. O salário é baixo, de cerca de R$ 1,6 mil, e só sustenta o pagamento de nossas contas. No fim da carreira, receber uma notificação dessas é levar uma rasteira”, desabafou Francisco.
A recomendação do MPF para ajuizamento de ações que obriguem os trabalhadores a deixar os imóveis da UnB é de maio último. No entanto, não se trata de uma decisão judicial, mas de uma recomendação – sem caráter impositivo. “Vamos aguardar a decisão final. Ainda existe uma esperança em reverter a situação”, acrescentou o zelador.
Infarto após notícia
Zelador do Bloco G da Colina, Raimundo Ferreira Vieira (foto em destaque), 76, mora no edifício há 34 anos. Depois de receber a carta de despejo, ele sofreu um infarto e precisou passar por uma cirurgia cardíaca de ponte de safena. Outro porteiro, morador do Bloco I, depende de uma cadeira de rodas para se locomover.
Raimundo, a esposa e o filho moram juntos. Se a família for removida, não terá para onde ir.
“Vamos buscar um aluguel com preço acessível, que possamos pagar. Tem uma quantidade enorme de apartamentos funcionais vazios, muitos e há muito tempo. [A ação de despejo] parece mais uma questão de perseguição, e isso me abala. Nossa intenção não é ‘morrer’ nesses imóveis, mas também não precisavam arrancar a gente dessa forma. Talvez que cobrassem uma taxa para continuarmos morando [neles]”, sugeriu o zelador.
Sem contratos formalizados
Um representante do grupo de moradores que repudia a medida e apoia os zeladores conversou com a reportagem e disse que o papel desses trabalhadores é diferente daquele dos demais porteiros.
“Não somos contra resolver irregularidades. Ao contrário. A questão que seja de forma respeitosa, com acordo e prazo adequado. Eles [os zeladores] não pagam financeiramente [pelos apartamentos], mas trabalham de domingo a domingo, noite e dia. Eles não podem ser vistos como usuários de algo gratuito, são pessoas que ocupam algo após acordo feito lá atrás com a própria UnB. Eles zelam pelo patrimônio”, comentou o representante do grupo, que preferiu não se identificar.
Outra moradora da Colina avalia que, quando era de interesse da instituição, a UnB chamou os zeladores para ocupar os imóveis, mas nunca se preocupou em formalizar contratos. Agora, segundo a entrevistada, a universidade não pode tratá-los como “invasores”.
“Essas unidades [habitacionais] dos zeladores não são imóveis funcionais. Elas não constam em qualquer lista. São de uso exclusivo para zeladoria. Há um ciclo de desinformação. [Espero] que os processos sejam justos, transparentes e democráticos, pois, com esses princípios, foi criada a UnB”, completou a moradora.
Nota de repúdio
Também circula entre a comunidade acadêmica, desde a última sexta-feira (5/7), uma nota de repúdio assinada por docentes e outros servidores da UnB que pedem revogação da ação de despejo. O documento classifica a medida como “lastimável, humilhante e desumana”.
Os funcionários lembraram que os ocupantes dos apartamentos em questão “não são invasores e foram autorizados pela Universidade de Brasília a ocupar esses imóveis, pois sempre desempenharam função de zeladoria dos blocos”.
Os signatários argumentaram, ainda, que os imóveis de porteiros não se tratam de unidades independentes, que devem ser usados “exclusivamente para esse fim [de zeladoria], não podendo ser alugados”, e que alguns desses moradores trabalham nos edifícios há mais de 30 anos.
MPF intimou universidade
Em entrevista ao Metrópoles, nessa quarta-feira (10/7), a reitora da UnB, Márcia Abrahão, afirmou ser favorável à permanência dos porteiros nos 11 apartamentos funcionais alvo de ações judiciais para reintegração de posse impetradas pela instituição.
Márcia argumentou que o MPF tem cobrado o despejo: “O Ministério Público obrigou a UnB a retirar essas pessoas. A universidade tentou justificar, falando que eles estavam lá havia muitos anos. O MPF colocou na última intimação que essa era uma recomendação, mas que, se não fizermos [a remoção], vão nos acionar judicialmente”.
“Estamos do lado dos porteiros, do lado dos moradores que os defendem. Queremos, então, que o Ministério Público se sensibilize, para que possamos chegar a uma solução pacífica e que atenda a todos os interesses”, completou a reitora.
Entenda o caso
Recentemente, a UnB ingressou com ações judiciais para reintegração de posse de 11 apartamentos funcionais ocupados por zeladores, nas quadras 205 e 206 e na região da Colina, todas na Asa Norte. A medida gerou revolta entre professores e outros funcionários da instituição de ensino superior que moram nessas quadras e convivem com os vizinhos há anos.
No documento do MPF, o procurador da República Hélio Ferreira Heringer Júnior mencionou que a UnB havia entrado com processos judiciais para desocupação de quatro imóveis, mas ainda faltavam sete apartamentos. Assim, recomendou que a universidade tomasse providências, em 60 dias, para entrar com as demais ações de reintegração de posse, sob pena de responsabilização dos gestores por inércia.
Os porteiros que ocupam os 11 apartamentos funcionais eram contratados diretos da UnB quando os edifícios foram instalados. Eles moravam no térreo para fins laborais. Posteriormente, a função da portaria foi terceirizada, os trabalhadores acabaram contratados pelas empresas prestadoras do serviço e continuaram a residir nos imóveis, mas sem suporte contratual, segundo o MPF.
A UnB informou que ajuizou todas as ações referentes aos 11 apartamentos funcionais, como recomendado pelo Ministério Público. A Secretaria de Patrimônio Imobiliário da UnB comunicou ao MPF sobre “as dificuldades para realizar a desocupação, por se tratarem de imóveis ocupados há décadas por essa famílias”, mas não houve “possibilidade de reversão [da recomendação]”, de acordo com a universidade.
“Diante do insucesso na desocupação voluntária, atendendo ao Ministério Público, a Advocacia-Geral da União ingressou na Justiça com pedidos de reintegração de posse das unidades ocupadas”, completou a UnB, por meio de nota.
A instituição de ensino superior acrescentou ser “sensível à situação dos porteiros” e reafirmou o “compromisso com os direitos humanos”. “Nesse caso específico, por se tratar de patrimônio da União, infelizmente, a UnB não tem autonomia para destinar os apartamentos para moradia gratuita dos porteiros ou de outro cidadão brasileiro que necessite”, destacou no documento.
“A universidade lamenta profundamente a situação e vem empreendendo todos os esforços para que a desocupação exigida pelo Ministério Público ocorra de maneira que minimize os impactos na vida dessas pessoas”, finalizou a instituição de ensino superior.