Pais de crianças autistas contam rotina de preconceito e superação
No DF, a Secretaria de Pessoa com Deficiência estima que o distúrbio do desenvolvimento neurológico atinja cerca de 15 mil pessoas
atualizado
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“Embora nossos filhos não falem eu te amo, não falem nosso nome, a gente sente o amor deles com gestos e afagos”. A descrição do sentimento é do fotógrafo Anderson Marques, 31 anos, pai de Luísa, 4, e Dylan, 2, ambos diagnosticados com Transtorno de Espectro Autista (TEA). Sem cara e sem cura, o Dia Mundial da Conscientização do Autismo é celebrado todo 2 de abril, desde 2007. A data foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), com objetivo de reduzir o preconceito com a população através de maior disseminação de informação.
No Distrito Federal, a Secretaria da Pessoa com Deficiência estima que o distúrbio do desenvolvimento neurológico atinja cerca de 15 mil pessoas. Em âmbito nacional, é estimado que 2 milhões de brasileiros viva com o transtorno. O Censo 2022 fará um novo levantamento sobre o assunto. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma a cada 160 crianças tenha autismo no mundo.
Levar e buscar na escola, ir ao psicoterapeuta, fonoaudiólogo, aderir à prática de esportes e fazer exames são alguns dos inúmeros compromissos dos pais de autistas. “O que é mais difícil [na rotina] é justamente a quantidade de compromissos que a gente tem”, explica Anderson.
O cuidado permanente e a necessidade de atenção constantes obrigam muitos responsáveis a abandonarem os empregos para acompanhar o desenvolvimento das crianças. Debora Barbieri, 32, mãe de Luísa e Dylan, deixou uma vaga como redatora em home office por conta da rotina. “Muitas vezes, a Luísa dorme às 2h, acorda às 5h, ela tem um sono muito picado”, conta o pai. “Tem dias que só andar de carro funciona para acalmá-la”, completa o morador de Águas Claras.
Além da terapia ocupacional e consultas no psicólogo, Luísa e Dylan tomam canabidiol e melatonina ─ hormônio do sono ─ para controlar a ansiedade.
No início do mês, a família foi alvo de preconceito em uma igreja da capital federal. Luísa teve uma crise de ansiedade e começou a chorar quando chegaram ao templo. Rapidamente um membro do local dirigiu-se aos pais e pediu que se retirassem do local, pois estavam “atrapalhando”. Esse foi o primeiro caso de preconceito direto que a família enfrentou, garante o fotógrafo.
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No entanto, salientam que olhares, sussurros e cochichos são frequentes em ambientes como mercados e farmácias. “Acham que é uma criança birrenta, sem educação dos pais”, conta.
Anderson diz que descobriu o caso de Luísa quando ela tinha cerca de 1 ano e meio de vida. “Não falava, regrediu em alguns comportamentos, não respondia quando era chamada pelo nome, não olhava nos olhos”, descreve. Inicialmente, procuraram um pediatra para confirmar o diagnóstico, mas, somente ao irem em uma neuropediatra, que confirmaram o TEA.
Mãe-Hulk
“Nós, os pais de autistas, temos uma briga diária para que a inclusão aconteça. Na escola dos meus filhos, sou conhecida como a Mãe-Hulk porque eu brigo”, conta Adriana Lobo, 47, brigadista. Ela conta que descobriu a condição de Samuel, 6, quando ele tinha 1 anos e 8 meses, três dias depois de o menino ingressar na escola. “Não ouvia quando o chamavam”, explica.
Ele tem uma irmã gêmea, Liz Keiko, que não tem o transtorno. “Pedi conta do emprego que tinha para cuidar deles. É isso que acontece com um pais de autista, é uma demanda de atenção extrema”, explica.
O pequeno começou o tratamento quando tinha 2 anos, no Centro Educacional da Audição e Linguagem (CEAL), vinculado à Secretaria de Saúde. A partir dos 4, mudou de escola, onde permanece até hoje, conciliando sessões de psicoterapia, terapia ocupacional e fonoaudióloga. “Sinto muita dificuldade na inclusão. Ela é vista como um trabalho a mais. Se ela realmente existir, vira uma ferramenta de apoio”, reclama Adriana.
Durante a pandemia, a mãe enfrentou dificuldades para embarcar com o filho em um ônibus apesar do uso opcional de máscaras para autistas. Desde de 26 de maio de 2020, foi decretado a liberação da proteção facial para esta parcela da população. “Mesmo com laudo, o motorista não me deixou subir”, conta.
Para a brigadista, apesar do destaque da data, faltam palestras dentro das escolas para ensinar crianças, adolescentes e pais sobre o assunto. “Tem que ser falado. A voz dos autistas é o pai e mãe”, defende.
Vovó Uber
“Quando o Carlos* entrou para a escola, com 2 anos, ele não falava. Fizeram uma reunião para comunicar que deveríamos levar o garoto para um especialista. Primeiro [para a família] é um choque. O que nós entendemos como autista é aquela criança não verbal, que não olha nos olhos, muito agitado, completamente apático. Começamos imediatamente com os tratamentos”, diz Rose Antonelle, 62, paisagista.
A vovó Uber ─ a mulher passa a maior parte do tempo com Carlos*, 6, levando-o para os compromissos ─ partilha as responsabilidades com os pais do garoto que pediram para não ter o próprio nome, nem o do filho, divulgados na reportagem.
Ela diz que, por acaso, a família soube do Programa de Educação Precoce do GDF e matricularam o garoto na instituição, onde ficou até os 4 anos. “O atendimento foi imediato e maravilhoso”, destaca.
“O Carlos* é cheio de regras. Se ele decide que vai tomar um sorvete depois da psicopedagoga e antes da natação, ai de mim se não cumprir. Ele possui um autismo muito leve. Quando não está bem ou desconfortável expressa-se por ecolalia ─ a repetição da fala do outro ─ também abana as mãos, rodando-as, com movimentos repetitivos”, conta.
O garoto alia a rotina no colégio com sessões de psicopedagogia e natação. Também não faz uso de medicamentos.
Pandemia de diagnósticos de autismo
Para a psicanalista e psiquiatra da infância e adolescência Inês Catão, outro efeito de pandemia de Covid-19 foi a “pandemia de diagnósticos de autismo”. “Caiu tão na banalidade que os pais estão diagnosticando os filhos. Sofrem por antecipação e procuram achando que o filho é autista e nem sempre é.”, reclama.
Profissional do Centro de Orientação Médico Psicopedagógica (Compp), a especialista trabalha com tratamentos de autistas há mais de 20 anos. No ambulatório, destaca que ultimamente precisa “desconstruir” diagnósticos. “A queixa mais frequente que a gente recebe é de atraso de fala, mas nem todo atraso de fala é autismo”, explica.
“Os próprios pais procuram os sintomas e sinais no Google e a criança chega diagnostica pela escola, pelos pais ou por outros profissionais que fizeram falso diagnóstico imediato”, diz.
Segundo a médica, o mais comum é que o laudo da criança seja fechado aos 3 anos de idade. Embora reconheça que “depois do primeiro ano, é difícil a criança mudar radicalmente no modo de funcionamento”. “Quando a gente erra o diagnóstico dela, a gente tá criando um problema para a criança”, salienta.
Para Inês, ninguém pode afirmar o que causa o TEA. Também argumenta que ninguém nasce autista e reconhece que neste campo a discussão é controversa. Para a psiquiatra, a criança começa a “se organizar” de maneira diferente e que o transtorno é resultado de uma falha muito inicial na organização psíquica.
Onde procurar ajuda
A cadeia de assistência aos pacientes com casos de TEA é formada pela Rede de Atenção Primária, pelos ambulatórios especializados e por unidades como os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSi), o Centro de Atenção Psicossocial tipo I (CAPS I) e o Adolescentro. Também o Centro de Orientação Médico Psicopedagógica (Compp), Centro Especializado em Reabilitação (CER II Ceal), Hospital da Criança de Brasília José de Alencar e Hospital Materno Infantil de Brasília.
Além disso, as demandas para reabilitação neuromotora dos pacientes com TEA são realizadas por três centros especializados: os Centros Especializados em Reabilitação Física e Intelectual (CERs) de Taguatinga; o Hospital de Apoio; e do Centro Educacional da Audição e Linguagem Ludovico Pavoni (Ceal-LP).
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