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Pai de menina que engravidou em seita denuncia casamentos espirituais

Ao se rebelar contra as regras retrógradas da congregação, a garota foi submetida a sessões de orações, que incluíam imobilização e tapas

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1 de 1 Seita-21 - Foto: Vinicius Santa Rosa/Metrópoles

A líder da seita acusada de manter jovens em cárcere privado tem um histórico extenso de violações aos direitos de crianças e adolescentes. A Polícia Civil do Distrito Federal recebeu outra denúncia contra a pastora Ana Vindoura Dias Luz, 64 anos. Dessa vez, ela e seus seguidores são suspeitos de tentar submeter uma menina 15 anos a um chamado “casamento espiritual”. Prometida a um homem que ela não queria, a adolescente rebelou-se, iniciou um relacionamento com um rapaz da mesma idade – também integrante da comunidade – e acabou engravidando do namorado.

No entanto, a desobediência às rígidas e retrógradas regras impostas pela Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia custaram um alto preço à garota. A resistência foi interpretada como “obra do demônio” e ela passou a ser exposta a longas sessões de orações. Em um episódio, sob argumento de “expulsar o capeta”, a adolescente foi imobilizada no chão e agredida com tapas no rosto e puxões de cabelo.

A história de terror vivida por Luciana* na chácara Folhas de Palmeiras, às margens da DF-290, na área rural do Gama, foi narrada pelo pai da jovem. Sem querer se identificar, o homem contou ao Metrópoles detalhes angustiantes dos cinco anos em que a filha viveu na comunidade. “Minha filha, menor de idade, foi prometida a um vagabundo qualquer e começou a sofrer retaliação porque se recusou a aceitar aquele absurdo.”

Ele explica que a filha começou a morar na comunidade quando a igreja ainda tinha sede em Corumbá (GO). “Eu e a mãe dela nos separamos e, após um tempo, as duas passaram a morar nessa comunidade. Depois, a mãe dela foi embora e deixou minha filha lá. Quando soube, iniciei uma peregrinação para encontrá-la e trazê-la para morar comigo”, relembrou.

Como a guarda da adolescente pertencia à mãe, o homem não conseguiu retirá-la da comunidade num primeiro momento. “Fui com a polícia de Goiás na chácara [em Corumbá]. Muitas pessoas começaram a cercar a gente, e a coisa só não ficou pior porque um policial ameaçou ‘engrossar’ caso eles não se afastassem. Tive de ir atrás de um juiz para conseguir ter minha filha de volta.”

Antes mesmo de a Justiça deferir o pedido, Luciana e o namorado foram expulsos da comunidade por serem considerados “subversivos”. “Essa expulsão foi um alívio para todo mundo”, contou o pai da jovem. Luciana e o companheiro atualmente têm 19 anos e vivem com a filha no Entorno do DF. Segundo o pai, ela não gosta de tocar no assunto por ainda carregar traumas dos anos de privação.

Crianças proibidas de serem vacinadas
As cerca de 200 pessoas que vivem na chácara Folhas de Palmeiras sob a batuta de Ana Vindoura são submetidas a duras leis criadas pela própria pastora. A primeira regra na seita é abrir mão de bens materiais. Os integrantes não podem usar creme dental, xampu ou sabonete. Todo material de higiene é produzido dentro da comunidade.

No local, não entra televisão ou rádio. Apenas Ana Vindoura e alguns obreiros – auxiliares diretos da pastora – podem ter telefones celulares. Uma das restrições coloca em risco a saúde das crianças que residem no lugar. Há dois anos, a seita foi notificada pelo Conselho Tutelar do Gama por impedir que crianças fossem vacinadas. Em 2016, conselheiros foram à chácara para averiguar denúncia anônima de que seguidores da pastora não estariam levando os filhos para serem imunizados na rede pública de Saúde.

De acordo com o conselheiro Wallisson Lourenço, mesmo com a determinação imposta pelo Conselho Tutelar, os pais dos meninos e meninas resistiam. “Nós explicamos que, se eles não apresentassem as cadernetas de vacinação preenchidas em sete dias, acionaríamos a polícia e a Vara da Infância e Juventude. Só então, a contragosto, eles cederam”, disse.

Wallisson ressaltou não ter sido a primeira vez que foi preciso intervir para evitar a violação de direitos de menores de 18 anos. Em outro episódio, os conselheiros tutelares do Gama foram à chácara após delação de que 10 garotos e garotas não estavam frequentando a escola. “Eram crianças de 4 a 10 anos. Depois que fomos ao local, eles matricularam as crianças, mas como é uma comunidade muito fechada e que se muda muito, é difícil de acompanhar. Tem família que não encontramos lá depois.”

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No terreno onde funciona a igreja, há um templo em construção
Entrada da chácara onde funciona a seita
Após ficar pronto, templo terá capacidade para 300 pessoas
Um dos quartos da casa onde uma jovem foi mantida em cárcere privado
Local onde a jovem dormia enquanto era mantida presa
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A pastora e líder da chamada Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia, Ana Vindouro

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No terreno onde funciona a igreja, há um templo em construção

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Entrada da chácara onde funciona a seita

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Após ficar pronto, templo terá capacidade para 300 pessoas

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Um dos quartos da casa onde uma jovem foi mantida em cárcere privado

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Local onde a jovem dormia enquanto era mantida presa

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Depressão associada ao demônio
O relato do conselheiro tutelar reforça o depoimento de outra jovem mantida em cárcere pela seita. Na quarta (9/1), o Metrópoles revelou o caso de Luana*, 19 anos, que passava as 24 horas do dia trancada numa sala tendo como única atividade ler livros bíblicos.

Ela diz sofrer de depressão, doença interpretada por Ana Vindoura e seus seguidores como sinal de que o corpo está possuído pelo demônio. Durante o período de confinamento, Luana só tinha autorização para ir à cozinha e ajudar nas tarefas domésticas. As chaves da casa ficavam sempre em posse da pastora. Embora Ana Vindoura e os chamados obreiros usem aparelho celular, a maioria dos membros da comunidade não pode ter telefone.

Luana conta ter começado a morar na igreja com a mãe em 2016. Em julho do ano passado, a mulher teria iniciado um relacionamento e se mudou, deixando a garota na chácara. Luana passou a trabalhar na fabricação de pães, que eram revendidos em padarias da região. “Eu não ligava muito porque gostava daquele trabalho e entendia que eu deveria retribuir de alguma forma, já que morava ali. Na minha cabeça, as coisas ficaram mais sérias quando quis sair para procurar emprego e me prenderam”, relata.

A garota só não ficou mais tempo mantida em cárcere graças a um descuido de Ana Vindoura. “Ela dormiu no sofá e eu consegui pegar o celular dela e mandar mensagens pedindo socorro para o meu pai.”

Ao ler o relato da filha, o aposentado Ronaldo Lucas Soares, 60 anos, entrou em desespero. Morador de uma pequena cidade no interior de Minas Gerais, ele imediatamente comprou passagem para o DF. Antes, porém, passou em uma delegacia da Polícia Civil de Minas Gerais e registrou boletim de ocorrência. O caso chegou ao Ministério Público mineiro, que, por sua vez, deu ciência à Polícia Civil do DF.

Segundo Ronaldo, Ana Vindoura teria tomado conhecimento da movimentação da polícia e da Justiça e decidiu libertar a jovem a fim de evitar escândalo. “Minha filha parecia um passarinho saindo da gaiola de tanta felicidade. Não fazia ideia que ela estava sem a mãe e passando por essas humilhações. Agora, quero ir até o final para que os responsáveis por esse sofrimento dela sejam punidos”, diz ele, que tenta juntar recursos para pagar um psicólogo para Luana. “Minha filha não está bem, parece traumatizada.”

Prisão
Os casos assombrosos começaram a se tornar públicos em 7 de janeiro deste ano, quando a 20ª Delegacia de Polícia (Gama) anunciara que, 10 dias antes, havia prendido Ana Vindoura por cárcere privado. Na ocasião, os agentes resgataram da casa uma moça de 18 anos que foi mantida trancada por quatro meses.

“A líder tentou nos enganar, mas insistimos e conseguimos chegar até a jovem. Ela nos contou que estava presa há quatro meses, sem poder se comunicar. Disse que tentou fugir dias antes, mas que acabou sendo pega na mata”, explicou o delegado Vander Braga.

Ana Vindoura acabou detida, entretanto, foi liberada no dia seguinte, após audiência de custódia. Segundo a juíza substituta Simone Garcia Pena, da 2ª Vara Criminal do Gama, embora estivesse “evidenciada a materialidade delitiva (…), entendo que a conduta em si não causou significativo abalo da ordem pública nem evidenciou periculosidade exacerbada do seu autor, de modo a justificar sua segregação antes do momento constitucional próprio, qual seja, após o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória”.

Como é ré primária, Ana Vindoura foi liberada por meio de medidas cautelares, entre elas a proibição de ausentar-se do Distrito Federal por mais de 30 dias, a não ser que autorizado pela Justiça; proibição de mudança de endereço sem comunicação prévia; e comparecimento mensal ao juízo processante.

Início
A congregação surgiu há 12 anos em Corumbá (GO). Durante oito meses, Ana Vindoura e parte do grupo passaram em Mato Grosso, com argumento de pregar o evangelho nas ruas da capital, Cuiabá. Para se sustentar, os seguidores da pastora vendiam livros com interpretações da Bíblia escritas pela própria pastora.

Filhos de membros da seita peregrinavam em semáforos e comércios da região oferecendo as publicações, o que levou o Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso a denunciar a obreira por trabalho escravo e infantil. A 4ª Vara do Trabalho de Cuiabá condenou a “líder espiritual” a pagar R$ 100 mil. A defesa dela recorreu e o processo encontra-se em tramitação no Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Segundo Ana Vindoura, as acusações contra ela são “prenúncio do apocalipse” e “obra de satanás”. “Essas pessoas, quando estão com problemas espirituais, começam a inventar coisas. Nunca mantive ninguém obrigado aqui. Todo mundo vai e volta a hora que quiser”, defendeu-se.

Procurada pela reportagem, a Igreja Adventista do Sétimo Dia disse não ter nenhuma relação com a seita do Gama e ressaltou que “é uma instituição mundial presente em mais de 200 países. Atuando no Brasil há mais de 100 anos, mantém escolas, clínicas, hospitais, agência de ajuda humanitária, programas e projetos que prestam serviços às comunidades em que estão inseridas em parceria com governos e organizações”.

Ainda segundo nota encaminhada à reportagem, disse que, “sempre prezando pelo livre arbítrio, a Igreja Adventista do Sétimo Dia não compactua com atitudes que firam a liberdade de nossos membros ou de qualquer outro ser humano, tampouco as pratica”.

Por fim, a instituição afirmou que “a denominação acusada de manter uma jovem em cárcere privado no Distrito Federal, apesar de ter um nome semelhante, não tem qualquer vínculo com a Igreja Adventista do Sétimo Dia”.

*Nomes fictícios a pedido da vítima

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