atualizado
Setenta anos da história do teatro estão guardados em baús, armários e guarda-roupas no subsolo do Conic, área central de Brasília. Em meio à poeira, um depósito acumula relíquias luxuosas, como figurinos de Dior e de Dijon, quadros do século 19, sapatos e chapéus feitos sob medida, entre outras peças que nem sequer foram descobertas. As peças de grife compõem um cenário abandonado do camarim de Dulcina de Moraes, embaixo da Fundação Brasileira de Teatro.
Em meio a dívidas que podem inclusive levar o prédio a leilão, o acervo começou a ser catalogado. O objetivo é dar início a um inventário dos artigos pessoais, profissionais e históricos da vida e da obra da atriz, que possa servir também para que a venda não seja permitida. Também é a primeira vez que os materiais são trabalhados na intenção de serem expostos, para que as pessoas conheçam.
Os trabalhos para recuperar e até mesmo descobrir o que tem no acervo da Dulcina tiveram início há sete meses. Até o momento, 218 figurinos foram inventariados. Ainda há 800 peças de roupa em cabides e outras mil dobradas. A equipe também conseguiu digitalizar 2 mil fotos históricas, desde a década de 1940, quatro diários da Dulcina e um de seu marido e grande companheiro Odilon Azevedo. Inclusive, no diário do grande mecenas, há uma carta em que o autor Monteiro Lobato apresenta críticas e impressões pessoais a um texto escrito por Odilon.
No local também foram encontrados 50 ofícios da época da ditadura, com documentos da censura a três espetáculos da companhia de teatro. Seis baús de turnês teatrais, com 250 chapéus, 30 pares de luva, mais 40 gravatas, 200 pares de sapato, 20 perucas usadas por Dulcina e mais de 30 artigos de uso pessoal. Mais de 200 quadros também foram encontrados no acervo, inclusive com fotos originais da Guerra de Canudos. Originais da revista O Pasquim de 1974 a 1989 também estão disponíveis no local.
Ainda constam mais de três caixas de planejamentos de aula da década de 1950, quando a Fundação Brasileira de Teatro teve início. Entre os professores das primeiras aulas, nomes célebres da cultura brasileira, como Cecília Meireles ocupando o cargo de professora de português para os alunos de Dulcina, com as anotações das provas e os diários de classe. Maria Clara Machado e Bibi Ferreira outros nomes de destaque que aparecem no quadro docente.
“Esse é, sem dúvida, o maior acervo da história do teatro brasileiro e estamos recuperando aos poucos”, disse o diretor do Espaço Cultural da Fundação Brasileira de Teatro, o ator e produtor Josuel Junior.
Quando Josuel Junior cita “aos poucos” não é simplesmente jeito de falar. A equipe que cuida da recuperação de todo esse material tem de lidar com a dificuldade causada pela falta de luminosidade por causa das dívidas não pagas, inclusive a conta de energia. O trabalho de recuperação do acervo só é feito das 10h às 14h para aproveitar a incidência solar do ambiente. Ao descer para o subsolo, é preciso usar lanternas.
Outra conta atrasada é a de água. Desta forma, os restauradores aproveitaram o período chuvoso no Distrito Federal para colocar baldes em telhados e do lado de fora para conseguir guardar a água e assim lavar os pisos e usar para a descarga. A recuperação tem sido feita com a parceria de duas voluntárias formadas em museologia, que vão catalogar e usar as técnicas para a melhor conservação do acervo.
“A gente está tentando remontar a história dela e, junto, a história do teatro brasileiro que está aqui”, disse uma das voluntárias, a museologa Desiree Calvis.
Dulcina foi uma militante ativista da classe artística da época. Naquela quadra da história, atrizes tinham a mesma carteira de trabalho de profissionais ligados à prostituição. Dulcina briga e consegue o primeiro documento regulamentando a profissão. Ela também foi a responsável por incluir folgas às segundas-feiras para os artistas.
Risco de perder tudo
Ao tocar a bainha dos vestidos, é possível sentir moedas presas. O objetivo era que o metal pesasse o figurino, e, assim, as peças não ficariam amarrotadas durante a apresentação. “É um vestido dos anos 1930, 1940, até a moeda aqui é histórica. É raro. Tudo aqui fica entre o antigo e o raro, destacou o diretor do Espaço Cultural da fundação, Josuel Junior.
“Se esse lugar for a leilão, o que vamos fazer com tudo isso? Onde vamos colocar todos esses vestidos? O que vamos fazer com tanta história?”, questionou o diretor Junior.
Atualmente, as dívidas do Dulcina estão acumuladas em R$ 20 milhões e o prédio, de aproximadamente 5 mil metros quadrados, deve ir a leilão para pagar apenas R$ 328.467,34.
A data já foi definida por leiloeiros e a previsão é que a venda do prédio ocorra em 14 de setembro deste ano. Caso não seja arrematado neste dia, outra data já foi previamente estabelecida: 28 de setembro. Se o processo correr, a partir de outubro o cenário do Conic pode começar por mudanças.
A elaboração do inventário é apenas uma das estratégias que a equipe que administra o teatro atualmente tem usado para tentar ganhar fôlego e manter o espaço.
A Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, criada e mantida pela Fundação Brasileira de Teatro – FBT, é fruto do sonho e do compromisso da atriz Dulcina de Moraes com a formação de artistas e arte-educadores no Brasil. A faculdade, com mais de 40 anos de atuação, foi criada em 1982, em Brasília, oferecendo originalmente os cursos de Licenciatura em Educação Artística, Bacharelado em Artes Cênicas e Bacharelado em Música.
Assista a um trecho do filme 24 horas de sonho, estrelado por Dulcina e Odilon:
A mantenedora é Fundação Brasileira de Teatro, uma das mais antigas fundações da área artística, instituída em 1955, ainda no Rio de Janeiro. Depois de 17 anos de funcionamento naquela cidade, transferiu sua sede para Brasília, onde se encontra até o presente momento. Assim como a faculdade, sua criação foi um empreendimento de Dulcina e de Odilon.