O sofrimento da população vulnerável que depende dos Cras no DF
Falhas nos serviços prestados pelos centros de assistência social fazem famílias ficarem horas sob sol, sereno e chuva em busca de um alento
atualizado
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Mal o portão abriu, a área interna já estava lotada. Quem havia ficado na fila por mais de cinco horas conseguiu pegar uma das 36 senhas disponíveis, mas as pessoas que chegaram depois, por volta das 6h da manhã, tiveram de esperar sob o sol quente pelo atendimento vespertino. O relógio marcava 8h em ponto de quinta-feira (29/11) e dezenas de cidadãos aguardavam há muito tempo em frente ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de Samambaia Sul.
Em busca de alimentação básica e renda para sobreviver, a população mais vulnerável precisa madrugar nas portas dos Cras do Distrito Federal. A carência do serviço está relacionada, principalmente, à falta de funcionários nas 27 unidades existentes. Informações truncadas, dificuldade para uso do telefone 156 e insuficiência de equipamentos também atrapalham a dinâmica dos locais, que são a principal porta de entrada aos programas governamentais.
Na fila com a mãe, Thalia Amorim da Silva, 9 anos, dormia sobre um cobertor e precisou levantar às pressas quando o serviço foi inicializado na unidade de Samambaia. Desempregada, Flávia Amorim Couto, 33, chegou às 3h para tentar se cadastrar no Bolsa Família e fazer o pedido de uma cesta básica. “Vou sair daqui, fazer almoço e levar minha filha para o colégio. É muito cansativo”, desabafou.
Sem conseguir atendimento preferencial, Carmina Rodrigues da Silva, 42, amamentava seu bebê de 5 meses enquanto aguardava. Pela primeira vez, ela foi tentar agendar a entrega de uma cesta básica. Beneficiária do programa federal, a mulher e o marido fazem bicos para sustentar a família, composta por mais dois filhos. “Não dá para viver bem assim”, reclamou.
Algumas pessoas levaram banquetas para descansar enquanto esperavam. Uma delas era Wellington Campelo, 49 anos. Por ter um tumor de células gigantes na perna, ele também se apoiava em uma muleta. O homem buscava por alimentação, uma vez que a aposentadoria por invalidez, conquistada neste ano, não é suficiente para o sustento dele e da esposa. “Por isso estou vindo atrás da cesta”, explicou.
A empregada doméstica Maria de Ribamar, 37, também chegou por volta das 3h da madrugada para tentar atualizar o endereço no cadastro do Bolsa Família. Ela se mudou de Valparaíso de Goiás (GO) para Samambaia Norte e estava com medo de perder o benefício. “Estou tentando desde de julho e não consegui agendar pelo 156”, relatou.
Cerca de 16km distante, no Cras de Riacho Fundo II, a situação era ainda mais desoladora. Um cartaz pregado na grade explicava o motivo: os agendamentos para entrega de cesta básica só poderiam ser feitos a partir da segunda quinzena de janeiro, pois as vagas de novembro e dezembro estavam esgotadas.
No centro de Santa Maria, a falta de data para agendamento também afastou as pessoas. Ainda sem nenhuma definição, havia expectativa de abrir atendimentos internos no início de dezembro para entrega dos alimentos em janeiro.
Nos Cras, a população em situação de vulnerabilidade e risco social recebe atendimento do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif). Por meio dele, as pessoas podem acessar outros serviços, benefícios, programas e projetos socioassistenciais.
O Metrópoles divulgou recentemente que mais de 20 mil famílias cadastradas no Benefício de Prestação Continuada (BPC) ainda precisam entrar no Cadastro Único (CadÚnico) de programas sociais do Governo Federal até 31 de dezembro, sob risco de perder o benefício. O agendamento para o CadÚnico, feito pelo número 156, não tem sido eficiente.
Medidas urgentes
Em 27 de agosto, uma nota técnica da Sedestmidh com diagnóstico da situação apontou a necessidade da adoção de medidas urgentes para garantir o recadastramento a tempo de evitar a suspensão em massa do benefício. Até aquele momento, 770 pessoas haviam concluído o procedimento.
O CadÚnico é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda e deve ser atualizado a cada dois anos. Por meio dele, é possível ingressar em programas como o Bolsa Família, DF sem Miséria, Morar Bem, entre outros. Conforme levantamento da Sedestmidh, mais de 290 mil cidadãos estão cadastrados.
As 27 unidades de Cras no DF tiveram uma média de 5.740 atendimentos mensais em 2017, conforme dados divulgados no portal da Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh). O número de funcionários em cada unidade não foi informado pela pasta.
Os próprios servidores dos centros acreditam que as informações sobre os serviços oferecidos não chegam até a população. “O problema maior é que as pessoas vêm de última hora. A situação é caótica porque há poucos funcionários”, disse um deles, que pediu para não ser identificado.
Ex-funcionária temporária, Ana Genoveva Santiago, 60 anos, auxilia e acompanha pessoas que necessitam de atendimento social. “Esse trabalho me aproxima de quem sofre. Precisa haver mais divulgação, mais informação. E não é só nos Cras, mas no serviço público em geral”, contou rapidamente, antes de acompanhar uma senhora na unidade de Santa Maria.
Assistência social em xeque
O presidente do Sindicato dos Servidores da Assistência Social e Cultural do GDF (Sindasc), Clayton Avelar, afirmou que os usuários reclamam que não conseguem “falar com o governo” pelo 156 porque a linha está sempre ocupada. Mesmo quem consegue agendar por telefone pode se deparar com filas por conta da lentidão.
Além de haver déficit de pessoal na rede de assistência social, os funcionários enfrentam situações precárias no trabalho, segundo o sindicato. O Metrópoles mostrou que a fila nos Cras pode gerar confusão entre usuários e funcionários. Também houve caso de fechamento de unidades por questões sanitánias.
É uma demanda crescente, até por causa da crise do país, e uma capacidade de atendimento declinante. Sem pessoal, fica impossível
Clayton Avelar, presidente do Sindasc
As soluções para isso, segundo o sindicalista, esbarram em questões financeiras. “No atual governo, houve muito problema para a liberação de recursos pela Secretaria da Fazenda”, lembrou.
Concurso
A Sedestmidh lançou em novembro edital para concurso com 314 vagas imediatas. No entanto, o Sindasc estima que as contratações vão repor no máximo 60% das aposentadorias ocorridas nos últimos quatro anos. Para uma equipe mínima, seria necessário chamar todo o cadastro reserva: cerca de 1.800 servidores.
“A homologação de um dos quatro editais só vai acontecer a partir de setembro de 2019. Vamos continuar com dificuldade de atendimento por causa da escassez de servidores”, afirmou Avelar.
O futuro secretário de Fazenda do DF, André Clemente, garantiu que o concurso da Sedestmidh será mantido pela próxima gestão, por entender a importância da área social.
No caso da assistência social, existe um fundo específico no DF para compra de materiais e modernização do sistema de atendimento às pessoas beneficiadas com cerca de R$ 13 milhões parados desde 2016. O dinheiro poderia ter sido aplicado na aquisição de computadores para os Cras ou na melhoria da central telefônica de agendamento, por exemplo.
O outro lado
A Sedestmidh informou que há “urgente necessidade de aumento efetivo de servidores nos Cras, Creas e unidades de acolhimento para melhor atender à comunidade do DF”. A pasta atribui a situação atual à paralisação do processo de concurso público nos últimos oito anos.
No entanto, a secretaria reconhece que o certame em andamento vai suprir apenas parte da perda de trabalhadores, a não ser que sejam chamados os aprovados no cadastro reserva. A pasta informou também que a manutenção dos espaços físicos e dos equipamentos é feita por empresas terceirizadas que prestam serviços periodicamente.