O dia em que um ex-secretário dos EUA foi expulso da UnB a ovadas
Em 1981, Henry Kissinger visitou a UnB e deixou a universidade de camburão, sob uma chuva de ovos e tomates. Caso terminou com 26 indiciados
atualizado
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O ano é 2017. Pessoas mundo afora manifestam repúdio ao novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sob o argumento de que o mandatário representa um retrocesso mundial em valores como tolerância e diversidade. Os próprios estadunidenses temem que a postura dele em relação a imigrantes — em especial, os do Oriente Médio — leve a uma nova escalada bélica. O ano é 2017, mas poderia ser qualquer outro das décadas de 1990, 1980, 1970 ou 1960.
Um evento, em especial, catalisou a revolta dos estudantes: a visita de Henry Kissinger, que havia sido o todo-poderoso secretário de Estado dos EUA nos governos Gerald Ford e Richard Nixon. A participação de Kissinger em um congresso no Auditório Dois Candangos da UnB teve manifestações com direito a chuva de ovos e tomates. O ex-secretário precisou deixar o campus escoltado pela polícia e 26 universitários foram indiciados.Em 18 de novembro de 1981, por exemplo, protestos contra o governo dos Estados Unidos tiveram como palco a Universidade de Brasília (UnB). O caso volta à tona agora, no momento em que o Arquivo Público do DF (ArPDF) divulgou milhares de documentos sobre o período de ditadura na capital federal que até então eram mantidos sob sigilo.
Um grupo de alunos, capitaneado pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), via a visita com maus olhos. Segundo eles, a participação do ex-secretário teria custado US$ 15 mil aos cofres da UnB. Quantia que poderia ter sido investida na própria universidade. Além disso, os manifestantes eram contrários à suposta interferência norte-americana na política de países latinos.
Bandeira em chamas
Munidos de faixas, cartazes, ovos, tomate e areia, os universitários seguiram para o auditório. Ao chegarem no local, porém, deram com as portas do Dois Candangos trancadas com cadeados. O grupo começou, então, a jogar os alimentos nas paredes e nos portões. Outros manifestantes atearam fogo em uma bandeira dos Estados Unidos.
A situação assustou os presentes ao evento. Na saída, o reitor José Carlos de Azevedo e o ex-secretário norte-americano tiveram que ser escoltados pela Polícia Militar para chegarem aos veículos e escaparem da ira dos estudantes, que gritavam: “Ladrão, ladrão, ladrão, saiu de camburão”. Um dos ovos jogados atingiu o então ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, João Leitão de Abreu.
Em um momento em que boa parte do país aspirava a volta das eleições diretas para a escolha dos representantes políticos e a a sociedade padecia dos efeitos da forte repressão dos últimos anos, Kissinger representava a antítese do que grupos de esquerda aspiravam. Em um ambiente universitário, então, foi a fagulha para incendiar os ânimos.
Operação Condor
Kissinger era conhecido por posições polêmicas, como o sinal verde dado à invasão do Timor Leste pela Indonésia, em 1975; e aos golpes de Estado no Chile, no Uruguai e no Camboja. Na época de secretário de Estado, endossou a Operação Condor — uma aliança político-militar entre vários regimes ditatoriais da América do Sul, incluindo o Brasil — criada com o objetivo de coordenar a repressão a opositores.
“O debate foi fechado por ordem do reitor Azevedo. Proibiram até que nós, estudantes, entrássemos para ouvir a palestra. Em protesto, os alunos furaram os pneus dos carros das embaixadas, jogaram ovos. Foi um tumulto imenso. Os participantes tiveram que sair com ajuda da polícia”, relembra a professora Tânia Montoro, da Faculdade de Comunicação, que era aluna de Ciências Sociais quando presenciou a desastrosa visita do ex-secretário norte-americano. O depoimento de Tânia, que ficou encarregada de apagar as luzes do auditório, foi dado à Agência de Notícias da UnB.
Indiciamento
Em um primeiro momento, os manifestantes seguiram em liberdade. Porém, policiais presentes ao evento identificaram os participantes do ato e repassaram para a Corregedoria da Polícia Civil do DF, responsável pelas investigações, meses depois.
Assim, 26 alunos foram intimados a depor na delegacia e acabaram indiciados criminalmente pela polícia, conforme mostra a lista abaixo:
Negação
Entre os envolvidos, estavam o então presidente do DCE, Zeke Beze Junior, e o vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Themis de Oliveira. Os dois assumiram à polícia que realizaram uma assembleia no dia do incidente. Entretanto, assim como os outros 24 citados, negaram ter jogado ovos ou tomate durante a manifestação.
Mesmo assim, o delegado à frente do caso, Francisco Feitosa Dias, concluiu o inquérito sugerindo que os investigados fossem processados pelo crime de “exercer violência, por motivo de facciosismo ou inconformismo politico-social contra estrangeiro que se encontre no Brasil, a serviço de seu país, em missão de estudo ou a convite do governo brasileiro”.
O relatório da Secretaria de Segurança, produzido em abril de 1982, termina com o pedido de habeas corpus para os estudantes, impetrado pela advogada Herilda Baduino de Sousa. Segunda ela, não haveria motivo para a prisão dos indiciados, uma vez que os estudantes haviam informado dados como endereço e identidade, além de comprovarem matrícula na universidade.