“O amor vai me fazer vencer”: veja a história de mulheres que lutam contra as drogas
Uma técnica de enfermagem, uma mãe de família e uma mulher trans, que reencontraram o sentido da vida por meio de tratamento e amor
atualizado
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“O amor pelo meu bebê vai me fazer vencer o crack”. A frase é de Gizelia Alves da Silva, 33, mãe do pequeno Paulo Henrique de apenas 2 meses de vida. Após anos mergulhada no mundo das drogas, a mineira de Governador Valadares está em tratamento há pouco mais de seis meses, em uma clínica do Distrito Federal. No total, o acompanhamento dela deve durar um ano.
Gizelia é uma das 35 milhões de pessoas que sofrem de transtornos relativos ao uso desenfreado de substâncias psicoativas e necessitam de tratamento. O dado consta no último Relatório Mundial sobre Drogas, realizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC).
O Metrópoles conversou com mulheres que buscaram tratamento para mudar de vida. São histórias de pessoas que chegaram ao fundo do poço. Perderam tudo. Durante anos, viveram à margem da sociedade. Saíram de casa, perderam emprego, se afastaram da família, dos filhos, assim como Gizelia. Envolvidas com o vício, deixaram de ser quem eram, mas conseguiram reunir a força de vontade necessária para dar a volta por cima.
O sensível assunto voltou aos holofotes com a estreia da série “Onde Está Meu Coração”, na plataforma Globoplay. O drama mostra a rotina de uma família de classe média alta, na luta contra o vício em crack de uma jovem médica, residente em hospital público de São Paulo. Apesar de ficção, a história se assemelha a tantas outras que acontecem na vida real.
Para as mulheres, os fatores de risco são ainda maiores e podem vulnerabilizá-las, à medida que o uso de entorpecentes faz com que elas deixam de exercer papéis socialmente esperados para elas, como o de boas profissionais, mães, cuidadoras e provedoras. Esse peso da desigualdade de gênero gera impactos nos cuidados com a própria saúde e pode causar a dependência química.
Superação
Gizelia é mãe de nove crianças, mas não criou nenhum deles. Quando a jovem chegou à comunidade terapêutica Salve a Si, localizada na área rural de São Sebastião, no Distrito Federal, ainda estava grávida. O desejo, agora, é só um: criar o caçula e recuperar a relação com os outros filhos.
A mineira era pré-adolescente quando experimentou maconha pela primeira vez, por influência de amigos de escola. Aos 14, ela namorou um traficante e engravidou da primeira filha. Tempos após o relacionamento acabar, a jovem se envolveu com outro rapaz com quem teve mais quatro crianças.
“Nós usávamos drogas juntos. Ele acabou comigo e se casou com outra mulher. Foi quando eu decidi ir embora e comecei a trabalhar em um cabaré no Espírito Santo”, relata.
Já na outra cidade, Gizelia conheceu o pai de Paulo Henrique. Ele era morador de rua e vendia drogas na esquina do prostíbulo. “Já conhecia outras drogas e começamos a usar o crack juntos. Em pouco tempo de relacionamento, engravidei novamente e a minha menina nasceu com uma doença e não sobreviveu. Tivemos outros dois filhos, um com hidrocefalia e uma menina, mas o Conselho Tutelar tirou as crianças da gente por causa do vício”, explica.
Foi quando o casal se mudou para o Distrito Federal, para viver em Ceilândia. “Conheci voluntários da casa em uma ação no SCS e quis buscar ajuda. Eu recaí uma vez e descobri que estava grávida novamente. Decidi que, dessa vez, eu precisava mudar a minha vida. Passei a minha gravidez e o resguardo aqui (na instituição). Hoje, estou com seis meses de tratamento e desintoxicação. O único apoio que eu tenho, está aqui dentro. Eu sei que vou conseguir”, conclui a jovem.
Pressão familiar
Patrícia de Fátima Chaves dos Santos, 42 anos, é técnica de enfermagem e completou seis meses de tratamento. Durante a entrevista, a moradora do Gama não segurou a emoção, enquanto buscava nas lembranças o que achava pertinente contar sobre a sua história. Diante da relação íntima e destrutiva com as drogas, da pressão familiar constante, a mulher enfrentou a guerra que travava dentro de si e foi acolhida, para ver a vida mudar.
“Eu comecei a beber com 29 anos, após a separação do meu casamento. Tive o primeiro contato com a cocaína e depois vieram várias outras drogas. Quando eu estava com 31 anos, experimentei o crack”, conta Patrícia.
Em pouco tempo, ela passou a frequentar o Setor Comercial Sul (SCS), começou a faltar os dias de trabalho, saiu de casa e a aumentou a frequência e a quantidade do uso do entorpecente. “Da última vez, eu saí do meu plantão, parei numa parada de ônibus próximo ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran) e tomei uma dose. Nessa, eu passei 8 meses na rua”, relata.
A virada de chave chegou para a técnica de enfermagem quando uma voluntária que oferecia café da manhã para a população de rua resolveu insistir para que Patrícia procurasse ajuda.
“Na comunidade terapêutica, eu aprendi uma nova maneira de viver. Comecei a me reconhecer e sei quais gatilhos me fazem sair do comportamento normal para o uso da droga. Enfrentei muitos desafios internos. Só por hoje. Eu nunca desisti de mim e a minha vitória chegou”, comemora.
Com a alta do tratamento, Patrícia vai assinar carteira de trabalho para ser monitora na casa e ajudar na recuperação de outras mulheres.
Da dependência para uma nova vida
A cabeleireira Bruna Miller Bianchi, 27, é uma mulher transexual. Natural de Unaí (MG), ela veio para o DF em busca de uma oportunidade de trabalho, abriu um salão de beleza em São Sebastião e acabou se perdendo no mundo das drogas.
Ela chegou na capital da República há cerca de 10 anos. Com quadro de depressão, ela usou entorpecentes pela primeira vez por curiosidade, mas perdeu tudo ao se entregar ao uso do crack. Para sustentar o vício, Bruna começou a se prostituir.
“Por motivos da minha sexualidade, depois que me assumi trans, eu não tive apoio e perdi muitos amigos e familiares. Me sentia muito triste e fazia de tudo para conseguir dinheiro. Além de vender tudo da minha casa, eu me prostitui para ter grana. Fui ao fundo do poço”, pontua.
A ajuda veio quando, ao perceber que estava ficando muito debilitada, Bruna pediu contato da comunidade para se internar. Ela chegou a pensar em suicídio.
“Eu coloquei fogo na casa que morava em São Sebastião. Pedi para um vizinho entrar em contato para me buscarem e eu internar”, diz. Bruna está em tratamento há um mês.
“O bem mais precioso que a gente tem é a dignidade. E quando chegamos na comunidade terapêutica, estamos em uma situação muito complicada. E mesmo que a gente tenha dentro de nós coisas boas que Deus nos deu, perdemos tudo quando usamos drogas. Eles nos dão tudo o que perdemos de volta.”
Além do tratamento, ela conta que o trabalho realizado com amor em conjunto com o apoio da mãe e da irmã, faz toda a diferença.
“As pessoas me tratam muito bem. Como uma pessoa que a sociedade lá fora não aceita. Estou reconhecendo que existe pessoas que ainda acreditam em mim. Quero sair uma pessoa melhor e cumprir todos os meus objetivos de vida. Reconstruir tudo o que eu joguei fora. Há cura, há transformação, há possibilidade de sair dessa situação”, acredita Bruna.
Salve a Si
Atualmente, a Salve a Si, conta com duas unidades. O centro de tratamento para dependência química feminina, inaugurado em julho do ano passado, em plena pandemia, tem 26 leitos, todos ocupados. As pacientes contam com cinco refeições por dia, além de assistência 24 horas de diversos profissionais, como conselheira e assistentes sociais. O tratamento é 100% gratuito e pode durar de seis meses a um ano. A casa ainda depende de doações para se manter.
“É uma realização tremenda a gente ter montado essa casa mesmo com todas as intempéries e dificuldades frente à pandemia. Aqui, a libertação delas vai muito além das drogas. Elas aprendem a ter lucidez, compreensão, acolhimento, para que encontrem o empoderamento delas. Elas podem se bastar. Podem ter amor próprio. Para que elas encontrem espaço na sociedade”, afirma o fundador Henrique França.
Mona Lisa da Silva Souza, 46, é adicta em recuperação e trabalha como conselheira em dependência química na instituição. “Sinto que essas mulheres chegam aqui bem abatidas e conseguem se recuperar. O meu papel é dar aquilo que eu recebi de graça. Quero mostrar para elas que quando se tem o desejo de mudar, a recuperação é possível. Ninguém está fadado ao fracasso porque usou droga.”
A Salve a Si também realiza, há quatro anos, um sopão beneficente no Setor Comercial Sul. Todas as quintas-feiras, a partir das 19h, um time de voluntários se organiza para oferecer o alimento a moradores de rua e dependentes químicos. Também há um caminhão equipado com banheiros, onde pessoas em situação de vulnerabilidade podem tomar banho.
Quem quiser ajudar a Salve a Si pode fazer doações na seguinte contas:
Banco do Brasil
Agência: 2887-8
Conta: 25.050-3
CNPJ: 11.208.669/0001-90
A Organização Não-Governamental (ONG) também disponibiliza uma plataforma on-line para as doações (clique aqui).
Narcóticos Anônimos (NA)
A irmandade dos Narcóticos Anônimos (NA), presente em 144 países, se viu em uma encruzilhada no meio do caos que a pandemia da Covid-19 instalou em todo o mundo. Precisando, mais do que nunca, dar auxílio aos seus adictos – termo usado para definir uma pessoa viciada em substâncias químicas ou determinados comportamentos – as reuniões presenciais, que tinham como base o abraço, o contato humano, foram suspensas. O apoio mais caloroso entre “irmãos” foi interrompido de um dia para o outro.
Estima-se que os Narcóticos Anônimos façam 70 mil reuniões no mundo todo a cada semana. Antes da pandemia, a sociedade – gratuita e sem fins lucrativos – fazia no Brasil mais de 3 mil reuniões presenciais por mês. Com a chegada da Covid-19 no Brasil, tornaram-se 1.538 reuniões on-line por semana. No total, 6.152 reuniões por meio de plataformas digitais por mês, mostrando um crescimento de 105% no número de encontros.
Os encontros pela internet ganharam força, tanto para membros antigos quanto para novatos. Mesmo em meio à tragédia do avanço implacável da Covid-19, o requisito segue o mesmo: o desejo de parar de usar drogas.
Levantamento da irmandade mostra que, até fevereiro de 2020, a Narcóticos Anônimos fazia 30 reuniões virtuais por semana. Neste maio, a organização chegou a atingir 1.700 reuniões por semana.
Para encontrar uma reunião, basta acessar o site do Narcóticos Anônimos, na aba “Encontre uma Reunião”. A página mostrará a reunião mais próxima a você. No Brasil, o grupo está presente em todas as regiões do país, com reuniões diárias e disponíveis 24h, nas plataformas Zello, Zoom, Meet e WhatsApp. As reuniões são gratuitas e abertas para todos.