Na Venezuela, economista e professora; no Brasil, chapeiro e faxineira
Refugiados venezuelanos com alta qualificação encaram empregos com baixa remuneração para sobreviver no Distrito Federal
atualizado
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A estante improvisada na sala de estar guarda lembranças da terra natal que teve de ficar para trás após série de mudanças vividas em seu país. O apartamento de quatro cômodos fica no coração de Taguatinga. Por lá, espalhados pelo imóvel, quadros, fotos e papeis ao lado de outros objetos que trazem memórias venezuelanas.
Apoiado em ambos os lados da estrutura, o varal, ainda com roupas, dá pistas de como a rotina das seis pessoas que moram no local desenrola-se após a chegada deles à capital federal por meio de um programa de imigração.
Alfonzo Sanchez, 64 anos, o filho, o sobrinho e a esposa dele, além das filhas do casal são parte dos 41 venezuelanos interiorizados para o Distrito Federal através do programa Acolhidos por meio do trabalho, da Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI). Eles moram no DF desde junho de 2020.
Criada em outubro de 2019, a iniciativa já interiorizou, no Brasil, 543 contratados em trabalho formal juntamente com 600 familiares.
O entra e sai na casa é recorrente. Hoje, o economista Alfonzo Sanchez, que lecionava em uma universidade pública na Venezuela, é funcionário de famosa rede de fast-food no DF. “Nunca em minha vida, vislumbrei isso”, lamenta. A depender do dia na semana, o professor reveza funções como chapeiro, operador de caixa, auxiliar de limpeza e etc.
Recebidos em 2018 pela imigração brasileira na região Norte, Alfonzo é um dos profissionais com formação qualificada que encara novas modalidades de emprego para sobreviver.
Em contrapartida ao êxodo venezuelano, a Operação Acolhida nasceu em março de 2018 e já atendeu mais de 230 mil refugiados nas bases de Pacaraima (RR), Boa Vista (RR) e Manaus (AM). Atualmente cerca de 8 mil pessoas estão em abrigos da força-tarefa.
“Aqui [no Brasil] é sofrido porque não levam em consideração seu nível de formação, você tem 60 anos e não serve para nada. É como se dissessem que sua vida acabou, que suas oportunidades passaram”, critica o ex-professor universitário que recebe pouco mais de um salário mínimo por mês.
Segundo Alfonzo, seus compatriotas saíram da Venezuela em busca de empregos e de condições de vida mais dignas. Mas ainda assim, mesmo em situação mais confortável do que a do país deles, a idade pesa para o economista. “É muito duro [passar várias horas em pé]”, avalia.
Apesar de ser falante de outra língua, o migrante ressalta que sempre foi muito bem tratado no Brasil. “Nunca trataram a mim e a minha família mal aqui, nem no trabalho. Só tenho a agradecer”.
Em vigência de assumir novo cargo na rede de fast-food, o economista procura por um serviço para validar o diploma e os títulos que possui. Assim, ele passará a receber maior salário a depender da promoção.
Reconhecimento de diploma para estrangeiros
A Universidade de Brasília (UnB) oferece o serviço de revalidação do diploma de graduação para estrangeiros a partir de uma taxa administrativa de R$ 2 mil. Segundo a instituição, o valor refere-se à análise e demais custas processuais e administrativas. Em caso de indeferimento, porém, não há restituição da taxa.
Professora em trajes de limpeza
Outra migrante atendida pela iniciativa é Carmen Marcano, 57. A pedagoga e professora de biologia atualmente reside na Casa Bom Samaritano, uma chácara construída em terreno no Lago Sul, doado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O centro de acolhida tem capacidade de abrigar 94 pessoas e passou a receber migrantes contempladas pelo projeto a partir de maio deste ano. Ao menos um integrante familiar é contratado para trabalhar no DF.
Por três meses, eles recebem moradia, alimentação e melhores condições de vida, além de apoio na hora de procurarem emprego e novo lar. Como desembarcaram em Brasília diretamente das bases da Operação Acolhida, todos possuem a documentação em dia e trabalham com carteira assinada.
O projeto recebe o apoio de outros institutos e entidades, como o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).
Para a diretora do IMDH, Irmã Rosita, a iniciativa tem impactado positivamente a vida dos envolvidos, já que eles passaram por mudanças, muitas vezes traumáticas, em busca da própria sobrevivência e, também, a da família.
Ainda com 6 semanas morando no local, Carmen sai às 11h da manhã para pegar o ônibus e chegar a tempo no trabalho.
“Eu não tenho 20 anos”, comenta sobre as dores nas costas decorrentes do serviço. Atualmente, a professora trabalha como auxiliar de limpeza em um shopping no Lago Norte. Na Venezuela, Carmen lecionava a disciplina de metodologia para os últimos anos do ensino médio e alguns semestres da universidade de sua cidade. Para ela, a mudança foi “muito brusca”, o que tornou o serviço atual “muito difícil”.
“Ontem o carrinho de limpeza caiu e minhas colegas foram ajudar. Uma pegou o pano, outra o rodo… Muito colaborativas”, relembra.
Moradora de Brasília desde o fim de agosto, Carmen defende que os venezuelanos fugiram para outros países em busca de melhores condições de trabalho. “Sou profissional, tenho que fazer o trabalho”, argumenta.
Novas terras, novos negócios
Outro residente da Casa Bom Samaritano é Omar Sanchez, 25. Ganhando cerca de R$ 1,4 mil na posição de auxiliar de pizzaiolo em estabelecimento no Lago Sul, o ex-estudante de gastronomia economizou por aproximadamente um ano até fugir para o Brasil, em fevereiro deste ano.
Em cidade próxima de Caracas, Omar trabalhou por 3 anos como balconista em uma padaria até precisar ganhar a vida como vendedor. Após largar os estudos por conta dos preços elevados, seu salário passou a ser de US$ 3 mensais. “Era muito difícil”, relembra.
Ainda com direito a duas semanas no centro de acolhida, o ex-estudante pretende alugar uma quitinete com seu namorado, outro refugiado da casa. Após se reestabelecer na próxima etapa da vida, sonha abrir uma loja, como um restaurante ou uma padaria, dentro de dois anos.
Doações:
Os interessados em colaborar ou enviar doações para o projeto Acolhidos por meio do trabalho desenvolvido pela AVSI na Casa Bom Samaritano podem entrar em contato pelo e-mail: acolhidos@avsi.org.br.
Exposição no CCBB
A exposição “Acolhidos: o percurso da Venezuela à integração no Brasil” que conta a história de refugiados venezuelanos até a acolhida no Brasil, com cerca de 120 fotografias, foi prorrogada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A mostra ficará aberta ao público até 14 de novembro.
Mais de 10 mil visitantes já conferiram os registros de Antonello Veneri no espaço. O projeto da AVSI Brasil nasceu com o intuito de ilustrar o trajeto percorrido pelas famílias, desde que chegaram ao Brasil, até a conquista de sua autonomia. Veneri cruzou a fronteira com a Venezuela e visitou os abrigos da Operação Acolhida, em Roraima, além de outras cidades que abrigaram os refugiados.
Serviço
Exposição “Acolhidos: o percurso da Venezuela à integração no Brasil”
Local: Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB Brasília (SCES Trecho 2 – vão central da Torre 4, térreo)
Data: 30 de setembro a 14 de novembro de 2021
Horário: De terça à domingo, das 9h às 21h
Entrada: Gratuita
Classificação indicativa: Livre