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Mulheres vítimas de stealthing narram experiências: “Tirou a camisinha sem avisar”

Prática consiste na retirada do preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da outra pessoa, e é considerada crime

atualizado

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1 de 1 estupro - Foto: istock

A prática denominada stealthing consiste na retirada do preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da outra pessoa e pode caracterizar o crime de violação sexual mediante fraude, descrito no artigo 215 do Código Penal. Embora ainda pouco falado, o ato é mais comum do que se imagina e pode causar graves consequências às vítimas.

Em português, a palavra significa, em tradução livre, “furtivo”. O autor leva a parceira a acreditar que está em um ato sexual seguro, mas, de maneira escondida, retira o preservativo e passa a praticá-lo em desconformidade com a vontade da mulher.

Além dos riscos de uma gravidez indesejada ou de adquirir doenças sexualmente transmissíveis, a situação também deixa consequências psicológicas nas vítimas. Foi o que aconteceu com Flávia*, de 34 anos, moradora do Distrito Federal. No início deste mês, ela teve uma relação sexual com um homem que tirou a camisinha durante o ato, sem o seu conhecimento. Após descobrir, Flávia tomou uma pílula do dia seguinte e procurou um hospital público do DF para receber um coquetel anti-HIV.

“Estou tendo uma insônia muito profunda, não sei se peguei uma doença sexualmente transmissível, porque ainda não fiz os exames dessas doenças. E o HIV eu só posso fazer o exame depois que terminar o tratamento profilático, que dura 30 dias”, lamenta.

Decisão unilateral

Flávia teve um relacionamento de cerca de um mês e meio com o autor. O casal estava separado, mas recentemente voltou a se aproximar. “Ele tentou três vezes uma aproximação comigo, eu achei que essa última tentativa seria uma aproximação para algo com mais certeza de sentimentos e tudo mais, porque a gente sempre acha que a pessoa pode mudar e pode melhorar”, conta.

Ela narra que, no último sábado (7/8), os dois então se encontraram em um bar e, de lá, foram para a residência dele. “Chegando lá, a gente foi transar e ele insistiu inúmeras vezes em não usar o preservativo, várias vezes, pelo menos umas oito. E eu sou uma pessoa bastante precavida, então estava com um preservativo na bolsa. Tirei o preservativo e coloquei nele e a gente começou a transar”, relata.

“Teve um momento que eu mudei de posição, onde fiquei de costas para ele e acho que foi nesse momento que ele tirou a camisinha. Em outro momento eu peguei no pênis dele e percebi que ele estava sem preservativo durante esse ato sexual, por trás de mim, sem que a minha visão alcançasse ele diretamente”, completa Flávia.

Assustada, a mulher questionou se o parceiro estava sem camisinha, mas ele negou. “Falou: ‘Não, eu não retirei, deve ter saído'”, conta.

“Eu parei de transar com ele, comecei a me vestir e tive uma crise de choro horrível, porque eu senti que, naquele momento, aquela pessoa que tinha uma voz doce, super educada, atenciosa comigo, se transformou. Todas aquelas qualidades que ele tinha foram por terra a partir do momento que ele tomou uma decisão unilateral, sem o meu consentimento. Para mim, foi extremamente decepcionante, eu acho que foi um dos momentos mais decepcionantes da minha vida”, desabafa.

Após ter vivenciado a situação, Flávia pesquisou sobre o assunto na internet e descobriu que a prática é um crime. “Eu já estava lendo sobre algumas práticas machistas que recebem nomenclaturas em inglês. Eu sei que existem o gaslighting, o manterrupting. Então, pensei comigo: deve haver alguma expressão para isso que eu passei. Pesquisei na internet e descobri que sim e, para a minha surpresa, descobri que isso, na legislação brasileira, é considerado crime. Aí eu pensei: ‘Então, essa vai ser minha hora de agir’.”

No domingo (8/8), ela procurou um hospital público do DF para tomar o coquetel anti-HIV. “Entrei em contato com ele, falando que tive que tomar esse coquetel por conta de uma atitude dele. Brigamos pelo WhatsApp e ele em momento nenhum admitiu que tinha retirado o preservativo, mas também disse que não se lembrava de nada. Ficou uma questão confusa, porque como ele tem tanta certeza assim que não tirou o preservativo se falou para mim que não se lembra das coisas? Ele bebeu o mesmo tanto que eu. Uma ida ao bar para mim não justifica uma atitude como essa”, diz.

Com dúvidas em relação à fala dele, Flávia decidiu entrar em contato com uma ex-namorada do homem, para saber se ela também já havia passado por situação parecida no antigo relacionamento. “Para a minha surpresa, ela já tinha passado pelas mesmas situações, mas tinha tido vergonha, medo, de fazer alguma denúncia. Eu falei para ela: ‘Você pode ficar tranquila, porque agora isso não vai passar batido'”, afirma.

Na terça-feira (10/8), Flávia procurou a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) e abriu um boletim de ocorrência.

Outro caso

Situação parecida foi vivenciada por Anna*, 33 anos. Há cerca de seis meses, ela entrou em desespero após descobrir que um rapaz com quem se relaciova tirou a camisinha durante o sexo. “Pior que eu só percebi quando concluímos. A sensação foi um misto de medo, desespero e raiva”, conta.

Ela não chegou a procurar a PCDF para denunciar o homem, mas tem considerado a decisão após conversar com amigas que são policiais. “Uma amiga delegada me explicou que é crime e cabe investigação contra ele. Estou considerando denunciá-lo, porque certamente ele vai fazer com outras mulheres”.

Crime

O Metrópoles pediu à Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) números de registros de casos como este na capital. Porém, a corporação informou que não tem estatísticas relacionadas ao assunto e acrescentou que “ocorrências policiais registradas em contexto da prática de crimes sexuais, por determinação legal, correm em segredo de justiça, inviabilizando a divulgação da dinâmica de crimes ocorridos”.

Segundo a advogada Cristina Alves Tubino, conselheira seccional da OAB-DF, uma vez que não existe um crime denominado stealthing, a prática é enquadrada como outros crimes, dependendo do caso.

“O que é que no Brasil tem se adequado a essa conduta se ele retirar, mantiver essa relação sexual e a mulher não tiver percebido? Tem-se entendido que poderia caracterizar um crime que está no artigo do 215 do Código Penal: que é o crime de violação sexual mediante fraude. Porque é punida uma relação íntima com alguém que enganou outra pessoa”, explica.

Cristina comenta que o crime tem pena de 2 a 6 anos, que, a depender das circunstâncias, pode ser cumprida até mesmo em regime aberto. “E aí temos que analisar o caso concreto.”

“Pode ser um crime mais grave? Pode. Tudo que a gente fala de crime depende do dolo, que é a vontade da pessoa. Se, por exemplo, o indivíduo que estava mantendo essa relação sexual tinha um dolo de contaminar a vítima com alguma doença sexualmente transmissível, pode ser outro crime. Pode ser o crime de perigo de contagio venéreo, se ela não adoecer. Se ela adoecer, pode ser um crime mais grave […] Quando é HIV, o entendimento da jurisprudência é que é crime de lesão corporal, por causa da gravidade da doença”, exemplifica a especialista.

No entanto, a conselheira da OAB-DF destaca que, se a vítima tenta interromper o ato sexual após descobrir que o parceiro retirou a camisinha e é impedida por ele, o ato já se caracteriza como estupro.

“Então, em linhas gerais, não existe um crime com esse nome, mas ele pode se adequar ao 215 do Código Penal, que vai caracterizar a violação sexual mediante fraude. Se tiver um dolo, uma vontade, uma intenção do agente, diferente, como de contaminar a pessoa com uma doença sexualmente transmissível, pode ser um outro crime mais grave por conta das consequências. Se a mulher percebe que ele tirou o preservativo e o agressor se utiliza da violência ou grave ameaça, pode também ser um crime mais grave, como o crime de estupro“, resume.

A advogada reforça a importância de mulheres procurarem autoridades caso sejam vítimas dessa conduta. “Isso viola não só a dignidade da mulher, mas também a liberdade dela de decidir o que quer fazer. É uma liberdade que ela tem: ‘Eu quero manter uma relação sexual com fulano, com camisinha. Se for sem camisinha, eu não quero’. E aí ele retira essa liberdade dela. É por isso que a gente consegue enquadrar dentro de um crime contra a liberdade sexual. Isso é uma forma de violência e as mulheres muitas vezes não sabem”, diz.

Consequências psicológicas

Conforme analisa a doutoranda em psicologia clínica e cultura Liliany Souza, muitos homens ainda se recusam ou evitam usar preservativos por conta de construções sociais. “Quando a gente fala sobre isso, é importante entender essa construção do que é socialmente aceito em relação a homens e mulheres. A gente tem uma sociedade que estimula a prática sexual masculina, essa valorização de uma potencia sexual dentro do masculino, e a mulher como um objeto de desejo.”

“Um ponto importante é que esse crime sexual pode acontecer tanto dentro de um relacionamento quanto fora dele. Eu diria que talvez dentro de um relacionamento pode ser muito mais comum do que a gente imagina. Eu ouço muitos relatos de mulheres que precisam de muita insistência para convencer o marido, namorado, parceiro a utilizar o preservativo. É extremamente cansativo esse processo de convencê-lo da importância de usar. Imagine isso numa relação com uma pessoa que é de certa forma desconhecida, um sexo casual. Gera um desgaste emocional muito grande”, comenta.

A pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) estuda violência de gênero e destaca as marcas psicológicas que este tipo de ato pode deixar nas vítimas. “É um sexo que foi consensual desde que se utilizasse preservativo, mas esse preservativo é retirado sem consentimento. Então, a mulher tem o corpo dela violado. Sem contar os riscos físicos, uma gravidez indesejada, uma IST (infecção sexualmente transmissível)”, diz Liliany.

Ainda de acordo com a psicóloga, uma vez que o assunto também ainda é pouco comentado, muitas mulheres não entendem a gravidade desta conduta criminosa quando são vítimas. No entanto, é necessário procurar ajuda e denunciar a prática.

“Essa cultura machista constrói valores, normas, formas da gente se relacionar. Os homens desde criança são treinados a entender que o corpo da mulher é objeto. Muitas vezes são educados inclusive por meio de pornografia, então a introdução à educação sexual passa pela pornografia, que é uma demonstração de violência enorme contra o corpo feminino. Tudo isso vai se construindo no imaginário desses homens de maneira geral, então quando ele vai se relacionar sexualmente, ele está com um padrão de relação sexual totalmente deturpado”, narra.

“A sexualidade vai além do ato sexual em si, ela diz como a gente se relaciona com as pessoas no geral, consentimento, confiança. Então os traumas que isso pode gerar, as consequências psicológicas também são enormes exatamente porque como essa mulher vai se sentir segura novamente para confiar em um parceiro em um ato sexual? Como ela vai ter a certeza de que ela não será violada novamente? Quando a gente fala nesse sentido falamos inclusive de possibilidades de depressão, ansiedade, porque o corpo dela foi violado. Lidar sozinha com esse processo de violência é extremamente danoso para nossos aspectos psicológicos”, destaca a pesquisadora.

Canais de denúncia:

A PCDF disponibiliza quatro meios para recebimento de denúncias: o 197 Denúncia On-line, o telefone 197, o e-mail denuncia197@pcdf.df.gov.br e o WhatsApp (61) 98626-1197.

*Nomes fictícios para preservar as identidades das entrevistadas.

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