Moradores de rua descobrem no amor a força para lutar contra o vício das drogas
Keli e Ricardo se conheceram há um ano e, desde então, se apoiam um no outro para traçar um novo caminho em suas vidas
atualizado
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Lançada em novembro de 2015, a revista brasiliense Traços defende duas boas causas ao mesmo tempo. Enquanto ajuda a divulgar temas relacionados à cultura da capital, auxilia pessoas em situação de rua a recuperarem a autoestima e se reintegrarem à sociedade, tornando-as parceiras no projeto. São eles os responsáveis em vender os exemplares pelo Distrito Federal.
Dos 50 primeiros integrantes que abraçaram a ideia, 19 já saíram das ruas, três conseguiram um emprego fixo, 10 começaram a se tratar e dois se internaram em clínicas de reabilitação. A publicação tem tiragem mensal de 10 mil exemplares e é vendida a R$ 5. Para cada revista comercializada, o vendedor embolsa R$ 4. O R$ 1 restante é usado para pagar despesas extras, como maquiador ou combustível.
Dois participantes, inclusive, encontraram no projeto muito mais do que uma forma de sustento. Após passarem anos nas ruas, Keli e Ricardo descobriram no amor a fórmula ideal para largar os vícios das drogas e começaram a sonhar com um novo caminho na vida. A história do casal foi contada pela Traços e o Metrópoles reproduz o belo texto na íntegra. Confira.
Keli & Ricardo
Por José Rezende Jr.
Ricardo gostou à primeira vista. Keli demorou um pouco mais, foi gostando devagarinho, primeiro das tatuagens, a gueixa, a feiticeira e o cavalo marinho, depois e principalmente dos olhos claros dele. Não exatamente dos olhos, mas do olhar. “Era olhar de homem apaixonado”.
Keli pesava menos de 40 kg. Ricardo olhava com olhos claros e apaixonados a mulher muito magra, quase sem dentes, devastada pelo crack – e o que ele via era uma mulher bonita, “cheia de coisa bonita por dentro”. Ricardo enxergava o que nem mesmo Keli era capaz de ver quando se olhava no espelho.
Eu me estranhava, os olhos fundos, a cara seca, eu olhava pra mim e dizia que eu não era eu
Keli
Keli Araújo da Silva e Ricardo Bispo da Silva estão há muitos anos nas ruas. Keli há mais de 20, Ricardo há quase 15. Mas só há cerca de um ano a rua de um deu de cruzar com a rua do outro. Keli não percebeu de imediato. Até que um dia Ricardo tomou coragem e arriscou quando ela passava: “Keli, meu amor”.
Keli riu da declaração atrapalhada. Tinha 31 anos, quatro filhos e motivo nenhum para acreditar no amor. “O Ricardo nunca levantou a mão pra mim, mas antes dele eu vivia com o olho roxo, de tanta pancada.”
Keli
As muitas pancadas da vida e dos homens começaram cedo. Keli morava com a mãe e seis irmãos num barraco pequeno, metade tijolo, metade tábua, numa invasão no Valparaíso 2. Toda manhã, mãe e filhos viajavam até o Lago Sul, onde tomavam conta dos carros estacionados no Gilberto Salomão. Todo fim de tarde a família voltava para casa. Keli tinha 8 anos quando decidiu não voltar. Aos 10, experimentou cola. Aos 12, perdeu os primeiros dentes, por conta de um soco (os outros perderia depois para as drogas). Aos 17, já se prostituía para sustentar o vício.
Quando o crack entrou de vez em sua vida, tudo pareceu perdido para sempre. Até o dia que Ricardo tomou coragem e arriscou quando ela passava: “Keli, meu amor”.
Naquele dia, Keli acumulava dívidas de R$ 250,00 com um traficante. Estava jurada de morte.
Ricardo
Ricardo morava em Campinas (SP), com pai, mãe e dois irmãos. “Meu pai não tinha função de pai, bebia demais, minha mãe eu acho que amava a gente, mas não mostrava, então era o mesmo que não ter amor em casa”, lembra Ricardo, que só foi conhecer o amor muito tempo depois, quando já não tinha casa e se apaixonou pela mulher muito magra, quase sem dentes, devastada pelo crack.
Em algum momento, a família se desintegrou. Ricardo foi morar com a avó, no interior da Bahia, numa casinha de taipa. Depois, com os tios, em Valparaíso (GO). “Era uma casa bonita, dois quartos, dois banheiros, varanda… Mas um dia o governo passou a máquina por cima. Não sobrou nada”.
Outra mudança, agora para o Novo Gama (GO). Um barraco feio, apertado demais para tio, tia e seis primos. Ricardo optou pela rua. Conheceu o crack, mas não chegou a se apaixonar por ele; se apaixonou foi pela mulher que um dia ele tomou coragem e disse quando ela passava: “Keli, meu amor”.
O amor vence o crack
Ricardo tinha 23 anos e usava crack há menos de um ano. Keli fumava há tempo demais. Ricardo estava quase parando, Keli queria parar. Sozinhos, talvez não conseguissem. Juntos, o amor venceu o vício.
Houve uma vez uma recaída. Keli não resistiu ao azar do dinheiro no bolso e do anúncio de um traficante: “consta da doce” (“tenho crack”, no idioma clandestino da rua).
Keli fumou uma pedra, depois outra e mais outra. A história de amor quase acabou ali. Ricardo quis ir embora para sempre, até chegou a ir, mas o para sempre durou meia-hora. Voltou, sentou do lado de Keli, esperou que o efeito da droga passasse, falou do tanto que já tinham caminhado e do tanto que faltava caminhar. E retomaram a caminhada.
Ricardo já estudava na Escola dos Meninos e Meninas do Parque, voltada para população em situação de rua. Keli decidiu seguir o exemplo. A prioridade, agora, era quitar a dívida com o tráfico. Lavaram carro e pediram dinheiro, até comprar de volta a vida de Keli. Prova de amor maior não houve.
https://youtu.be/reovLwJ8Y44
Porta-Vozes da Cultura
Um dia, no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), ouviram falar de um novo projeto: uma revista chamada Traços, que seria vendida por gente que nem eles – sem casa, sem fonte regular de renda, sem oportunidades. Resolveram acreditar, e se tornaram Porta-Vozes da Cultura.
A boa vendagem da revista vai se convertendo em melhorias: a barraca de camping onde agora dormem com mais conforto; um par de tênis para cada um; o shampoo e os cremes para Keli; o suco de laranja, o pão com mortadela e a caixinha de água de coco quase todo dia de manhã. E o melhor de tudo: as duas cestas básicas e os R$ 200,00 orgulhosamente entregues pelo casal à mãe e aos filhos de Keli, que moram juntos no Novo Gama.
Keli ganhou peso, ganhou novos dentes. Até pediu para tirar uma nova foto para o crachá da Traços, dessa vez com o sorriso bem aberto. Ela e Ricardo são felizes, do jeito que conseguem ser. Mas falta o principal, ou o segundo principal, se o primeiro for o amor, que eles têm de sobra.
Eu queria morar numa casa. Já pensou que coisa boa, estudar e trabalhar e no fim de dia chegar em casa, e ter um chuveiro, uma cama, um chinelinho, um cachorro, uns gatos…
Keli
Ricardo sonha com tudo isso e com alguma coisa a mais: “Eu quero muito um filho, mas não agora, não na rua. Quando a gente tiver uma estrutura”, adia ele.
O problema é que Keli fez laqueadura após o quarto filho, justamente para não engravidar de novo. “Por isso eu tenho medo que o Ricardo vá embora, que me troque por uma mulher que lhe dê um filho”, confessa Keli.
Mas Ricardo pensa diferente, tem muita fé na medicina e na bondade dos médicos.
“Hoje em dia eles não tiram o coração de uma pessoa, o coração fica batendo, tum tum tum, e depois eles pegam esse coração e botam em outra pessoa? Pois então, quando a gente tiver estrutura, eu vou no hospital e peço pra desfazerem a cirurgia da Keli, que há de ser mais fácil que trocar de coração. Quando os médicos virem o tanto que a gente se gosta, vão fazer de tudo pra gente ter o nosso filho.”