Moradora do DF abre creche por conta própria e acolhe 91 crianças
Creche no bairro de Santa Luzia, na Estrutural, uma das regiões mais vulneráveis do Distrito Federal, depende de doações. Saiba como ajudar
atualizado
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A cerca de 20 minutos do centro de Brasília – considerada a capital com melhor qualidade de vida do Brasil –, uma das regiões mais vulneráveis do Distrito Federal coexiste rodeada por estradas de terra e rastros de esgoto que corre a céu aberto.
A realidade da comunidade de Santa Luzia, na Estrutural, revela a desigualdade que impera no Distrito Federal. E a falta de pavimentação e de saneamento básico não são os únicos problemas da área: a carência de políticas públicas também castiga os moradores, que, distantes do olhar do Estado, transformam a solidariedade em protagonista.
Simples e escondida em uma das ruas do bairro, uma creche comunitária muda a vida de dezenas de famílias de Santa Luzia. Sob responsabilidade de Maria da Conceição Ferreira, 55 anos, a creche da Tia Tatá oferece educação e cuidado a 91 crianças, para que as mães – a maioria solo – e outros parentes delas possam trabalhar.
“A maior parte das crianças não tem a presença do pai”, contou Maria da Conceição. Também conhecida como Tia Tatá, a dona da creche recebe meninas e meninos na própria casa, totalmente adaptada para o acolhimento. Até hoje, a iniciativa dela não conta com apoio governamental, mesmo que não existam creches públicas na região da Estrutural.
O espaço se sustenta graças a doações, à boa vontade da população e ao trabalho de voluntários. Os interessados em contribuir com a iniciativa podem entrar em contato pelo telefone 61 996-483-772.
“Não somos só uma creche, também somos uma casa comunitária. A comunidade é muito carente, e a maioria das crianças que está aqui tem apenas a mãe. E essas mulheres têm uma longa história de sofrimento. Então, enquanto cuidamos dos filhos delas, alimentamos e damos aula de reforço, as famílias podem trabalhar sabendo que os meninos e as meninas são bem cuidados”, completou Tia Tatá.
Promessa e ajuda
A creche, que existe há 12 anos, é fruto de uma promessa de Maria da Conceição a Deus, após enfrentar um câncer no colo do útero, há muitos anos. “Prometi que, se ficasse bem, abriria uma creche.”. Curada, Tia Tatá percebeu a necessidade de um trabalho comunitário para esse fim na região, ao mesmo tempo em que trabalhava ao lado de outros moradores da área no antigo Lixão da Estrutural.
“As mulheres levavam os filhos escondidos para o Lixão, pois precisavam trabalhar e não tinham com quem deixá-los. Com a promessa que eu tinha feito, resolvi abrir a creche. No início, era muito difícil. Eu batia de porta em porta para conseguir doações para alimentar as crianças. Com o tempo, falaram de mim em reportagens, e muitas pessoas apareceram ajudando com doações”, recordou-se.
Hoje, a creche também atende famílias que chegam ao local à procura de alimentos. “Essa é uma região muito vulnerável. Os moradores precisam de muita coisa, e nunca neguei nada. Quando chegam pedindo, eu ajudo mesmo. Se tiver uma cesta básica completa, eu entrego. Se precisarem de algo mais específico, como leite, arroz ou feijão, damos um jeito de conseguir. Não é fácil, principalmente quando as doações diminuem, mas nos esforçamos para colaborar com quem precisa”, completou Maria da Conceição.
Maria da Conceição lembrou que todos que atuam na creche não recebem remuneração. Algumas das colaboradoras, inclusive, são mães e não têm emprego. Porém, devido às dificuldades financeiras da instituição, as voluntárias recebem doações.
“Elas sempre saem daqui com algum alimento. Além disso, quando recebemos roupas ou móveis, por exemplo, faço um bazar e dou o lucro a elas ou vestes para os respectivos filhos. Essas mães nos ajudam a cuidar das crianças, ajudam a preparar as refeições, entre outras tarefas”, elencou.
Ainda assim, as dificuldades para operação da creche permanecem, segundo a idealizadora: “Algumas das coisas de que precisamos muito continuam a ser alimentos, faldas, roupas para bazar, gás de cozinha e materiais escolares. Na verdade, precisamos de muita coisa”, reconheceu.
Ao ser questionada sobre atuar por 12 anos sem receber por isso, Tia Tatá respondeu que a creche é o propósito de vida dela. “Isso aqui significa tudo para mim. Não me imagino fazendo outra coisa. Tem gente que acha que ganhamos dinheiro, e isso não é verdade. Se não fosse o salário do meu marido e a boa vontade [das pessoas], a creche não existiria. O sofrimento é grande, mas, cedo ou tarde, damos um jeito, e tudo fica certo no final. Isso é o que me motiva”, acrescentou.
Voluntariado
A reportagem esteve na creche e acompanhou o trabalho da equipe de voluntários no local. No dia da visita, as crianças mais velhas – com idade entre 7 e 12 anos – ensaiavam uma apresentação para o Dia dos Pais, apesar de quase todas não terem uma representação paterna em casa.
Após receber uma lembrancinha para entregar ao genitor, uma das crianças disse para a professora que “não tem pai”. Ao que a pedagoga Maura Maria Moreira, 60, respondeu: “Todos temos pai, seja ele presente ou ausente. Mas você pode entregar [a lembrancinha] a algum homem da família, se quiser”.
Voluntária no espaço, Maura detalhou que, por muito tempo, trabalhou em escolas. Uma situação, no entanto, distanciou-a da sala de aula: a perda do primogênito. Depois de alguns anos, ela foi convidada a lecionar novamente, como voluntária, e se apaixonou pela função.
“As crianças aqui são carentes de amor e carinho. Ambos eu tenho de sobra para dar. Aqui [na creche], trabalhamos com poucos recursos. De manhã, ensino alfabetização; à tarde, dou aula de reforço. É meu papel aqui. Sou muito grata a Deus por ter me apresentado [o voluntariado], apesar das dificuldades. Eu faço porque eu gosto”, enfatizou a pedagoga.
Dificuldade de acesso ao básico
Em 2020, um levantamento feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) e a Universidade de Glasgow, na Escócia, classificou a região de Santa Luzia, na Estrutural, como a área do Distrito Federal com os maiores níveis de privação de acesso à saúde e a bens materiais.
O levantamento foi feito com base em regiões censitárias (o DF tem mais de 4 mil), e o índice da pior área – Santa Luzia – chegou a 5,65, considerado muito alto. A população da região é de 1,69 mil pessoas, de acordo com a plataforma do Índice Brasileiro de Privação (IBP) divulgada à época. Do outro lado da tabela estão as regiões do Plano Piloto e dos lagos Sul e Norte, todas com os melhores índices.