Mané Garrincha: presidente e executivos da Via entram na mira do Cade
Fernando Queiroz e subordinados da empreiteira são suspeitos de integrarem possível esquema de formação de cartel para obra no estádio
atualizado
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O empresário Fernando Queiroz (foto em destaque), dono da Via Engenharia, além de dois executivos do grupo – Luiz Felipe Cardoso de Carvalho e Luiz Ronaldo Santos Wanderley – estão entre as 36 pessoas físicas que são alvo de procedimento administrativo instaurado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. O Cade investiga suposta formação de cartel em obras de arenas esportivas destinadas à Copa do Mundo do Brasil de 2014, incluindo o Estádio Nacional Mané Garrincha. O órgão apura se o trio e os demais citados têm participação em possível conluio na licitação pública voltada para a reconstrução da principal arena do DF, que custou cerca de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos locais. O procedimento interno foi instaurado na terça-feira (16/07/2019), mas tornado público apenas um dia depois.
O Metrópoles teve acesso ao documento que mira na construtora brasiliense, além de outras gigantes da construção civil. A instauração do Cade é resultado de cinco anos de investigações do órgão e também de acordo de leniência firmado com a Andrade Gutierrez e intermediado pelo Ministério Público Federal (MPF) no âmbito da Operação Lava Jato. No total, 10 empreiteiras atuantes no país são alvo de apuração. De acordo com o Cade, há ainda suspeitas de participação das empresas Carioca, Queiroz Galvão, Odebrecht e OAS no possível conluio.
De acordo com o documento, todas as empresas investigadas teriam se unido formal ou informalmente com o objetivo de serem beneficiadas em obras tidas como indispensáveis para a realização da Copa de 2014, conforme exigências impostas pela Federação Internacional de Futebol (Fifa). No caso de Brasília, o órgão de controle suspeita que a Via Engenharia tenha se unido à Andrade Gutierrez em consórcio com o objetivo de evitar a participação de concorrentes na construção do Mané Garrincha. As empreiteiras já respondem na Justiça Federal a suspeita de superfaturamento nas mesmas obras.
“O signatário Rodrigo Ferreira Lopes da Silva (Superintendente Comercial Regional do Centro-Oeste da Andrade Gutierrez) recebeu orientações de Clóvis Renato Numa Peixoto Primo (Diretor Geral da Unidade de Negócios do Norte da Andrade Gutierrez), que o comunicou que a Andrade Gutierrez tinha interesse no estádio de Brasília. Para a conquista desta obra, a Andrade Gutierrez firmou parceria com a Via Engenharia, empresa com ampla atuação local em Brasília/DF e com significativos contatos perante o Governo do Distrito Federal. A intenção da Andrade Gutierrez, ao firmar este consórcio, era evitar concorrência com um forte concorrente local e ter acesso político facilitado ao órgão licitante. O Aderente Carlos José de Souza (Gerente Comercial da Andrade Gutierrez) relata ter sido informado da definição de formação de consórcio entre a Andrade Gutierrez e a Via Engenharia por seu chefe imediato Rodrigo Ferreira Lopes da Silva (Superintendente
Comercial da Andrade Gutierrez)”, aponta um trecho da investigação.
Edital direcionado
O inquérito administrativo relata, de acordo com os acordos de leniência, a possibilidade de a Companhia Urbanizadora do Distrito Federal (Novacap) ter criado um grupo de trabalho, orientado pelas empreiteiras, para conseguir direcionar o edital de forma que elas se sagrassem vencedoras da disputa. “O signatário Carlos José de Souza informa ainda que, à época da elaboração deste segundo GT, foi informado por seu superior, Rodrigo Ferreira Lopes da Silva, de que o edital seria direcionado para que o consórcio formado por Andrade Gutierrez e Via Engenharia pudesse vencer a licitação para realização das obras do Estádio Nacional Mané Garrincha”, registra.
O consórcio formado pela Via e Andrade foi solidificado a ponto de que cada empresa tivesse a participação de 50% cada nos recursos para o empreendimento milionário em Brasília, mas atraíram ainda a OAS a fim de garantir a vitória no certame. “De acordo com o signatário Carlos José de Souza (Gerente Comercial do Distrito Federal e Tocantins da Andrade Gutierrez), no final de 2009, após a entrega da documentação de pré-qualificação por parte do consórcio formado por Andrade Gutierrez e Via Engenharia, foram realizadas negociações com a OAS para acertar o conflito de interesses entre o consórcio e a empresa, aventando-se diversas possibilidades de acordo e concluindo-se pela apresentação de proposta de cobertura no certame pela OAS”.
A ideia, segundo os delatores, foi de incluir a OAS nas etapas das obras e garantir à empreiteira uma fatia da fortuna bilionária destinada à reconstrução do estádio brasiliense. A inclusão da OAS teria sido abonada, inclusive, pelo então governador Agnelo Queiroz (PT). O trecho da delação refere-se à segunda etapa da construção do estádio, que poderia servir como compensação para que a empreiteira fosse vencedora.
“Os signatários informam que, ao final de tal reunião, acertou-se que a licitação do Estádio Nacional Mané Garrincha ficaria com o consórcio formado por Andrade Gutierrez e Via Engenharia. Diante da impossibilidade de participação da OAS em referido consórcio, uma vez que os documentos de pré-qualificação já haviam sido entregues, ou de sua subcontratação na licitação, teria sido firmado um acordo entre o Consórcio Andrade Gutierrez /Via Engenharia e a empresa OAS de que a OAS seria futuramente compensada com outra obra, não definida naquele momento, e que, em contrapartida, apresentaria proposta de cobertura na licitação do Estádio Nacional Mané Garrincha para que o consórcio Andrade Andrade Gutierrez/Via Engenharia se sagrasse vencedor no certame”.
De acordo com o relatório do Cade, a Via Engenharia “teria praticado condutas anticompetitivas consistentes em acordos de fixação de preços, condições, vantagens e abstenções de participação; divisão de mercado entre concorrentes, e troca de informações concorrencialmente sensíveis sobre interesses estratégicos nos estádios, por meio da formação de consórcio e solicitação de propostas de cobertura, a fim de frustrar o caráter competitivo da licitação pública referente ao Estádio do Mané Garrincha (Brasília/DF)”.
Na referida licitação, a empresa pertencia ao Consórcio Brasília 2014 (formado pela Andrade Gutierrez e Via Engenharia), que teria solicitado a apresentação de propostas de cobertura para a OAS. “Sua participação na suposta conduta teria sido implementada pelos seus funcionários e/ou ex-funcionários Fernando Márcio Queiróz (diretor Presidente da Via Engenharia), Luís Ronaldo Santos Wanderley (diretor de Engenharia da Via Engenharia) e Luiz Felipe Cardoso de Carvalho (diretor Comercial Via Engenharia)”, completa.
Subordinação
Com base nas mesmas delações, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica também incluiu no rol de investigados pessoas físicas que teriam participação efetiva nas operações alvo de apuração por parte do órgão de controle. Tanto o presidente da Via Engenharia, Fernando Queiroz, quanto seus subordinados Luiz Felipe Cardoso de Carvalho e Luiz Ronaldo Santos Wanderley são alvo do procedimento investigativo de forma separada.
De acordo com o relatório, Queiroz “teria praticado supostas condutas anticompetitivas consistentes em acordos de fixação de preços, condições, vantagens e abstenções de participação; divisão de mercado entre concorrentes; e troca de informações concorrencialmente sensíveis sobre interesses estratégicos nos estádios e por meio de contatos anticompetitivos com concorrentes para formação de consórcio e solicitação de proposta de cobertura, a fim de frustrar o caráter competitivo da licitação pública referente ao Estádio Mané Garrincha”. Ainda segundo o documento, o empresário “teria formado consórcio com a Andrade Gutierrez e formado grupo de trabalho para direcionamento do edital, além de ter participado das tratativas com a OAS para a apresentação de proposta de cobertura em favor do consórcio Andrade Gutierrez e Via Engenharia”.
No caso dos executivos do grupo, o Cade reforça as mesmas suspeitas que pairam sobre a conduta de Fernando Queiroz. “Pela dinâmica do conluio ora apresentado, é possível identificar relações de hierarquia no processo de tomada de decisões, com distinção entre aqueles que tomavam as decisões de nível mais estratégico e aqueles que operavam os supostos ajustes anticompetitivos”, assinala o documento ao situar a participação dos diretores da Via Engenharia nas operações.
“Diante de todo o exposto, verifica-se a existência de indícios robustos de prática de condutas anticompetitivas no mercado nacional de obras de construção civil, modernização e/ou reforma de instalações esportivas (estádios de futebol) destinados à Copa do Mundo do Brasil de 2014 (Copa do Mundo)”, conclui a investigação do Cade.
O outro lado
O Metrópoles procurou tanto o empresário Fernando Queiroz, quanto os executivos Luiz Felipe Cardoso de Carvalho e Luiz Ronaldo Santos Wanderley, por meio da banca de advogados que atuam nos processos sobre a construção do Mané Garrincha que correm no Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) e Justiça. Contudo, pelo fato de o novo procedimento tramitar na esfera administrativa, a defesa afirmou que só poderia se manifestar mediante autorização expressa da Via Engenharia. Até o fechamento da reportagem, contudo, a empresa não retornou o contato. O espaço permanece aberto para manifestações oportunas.
O Governo do Distrito Federal (GDF) também foi acionado, mas afirmou que o episódio ocorreu em gestões anteriores, mas que tem colaborado de forma efetiva com todas as investigações sobre as denúncias que envolvem a arena esportiva.
Sobre o tema, a assessoria de imprensa da Minas Arena esclareceu que “a apuração não abrange a Minas Arena e seus acionistas, os quais não se encontram nem mesmo relacionados dentre as pessoas notificadas para apresentação de defesa no processo. Importante deixar claro também que a versão pública da nota técnica do CADE que respaldou a abertura do inquérito descreve que o então consórcio Minas Arena não participou de tentativa de cartel”.
Veja a íntegra do documento:
Arenas Nt de Instauracao de Pa Sei 0634342 Versao Publica by Metropoles on Scribd
Acordo de leniência
A apuração dos fatos teve início a partir de celebração de acordo de leniência com a Andrade Gutierrez, executivos e ex-executivos da empresa. Na ocasião, a companhia apresentou informações e documentos com indícios de conluio entre concorrentes de licitações destinadas a obras em estádios de futebol para realização do mundial, em 2014, no Brasil.
A investigação das práticas anticompetitivas foi aprofundada pela Superintendência-Geral do Cade após a celebração, em novembro de 2018, de dois Termos de Compromisso de Cessação (TCCs), sendo um com a Odebrecht e outro com a Carioca, além de executivos e ex-executivos das empresas. Os termos permitiram trazer aos autos das diligências confirmações dos supostos acordos ilícitos, informações e documentos adicionais sobre a conduta.
Até o momento, há indícios de que os contatos entre concorrentes teriam iniciado com a definição do Brasil como sede do mundial pela Fifa, em outubro de 2007, tendo se intensificado no segundo semestre de 2008. O cartel teria atuado, pelo menos, até meados de 2011, quando foram assinados os contratos referentes às obras públicas dos estádios de futebol para a Copa do Mundo.
Além do Mané Garrincha, a superintendência-geral do Cade apurou que oito procedimentos licitatórios envolvendo obras nas seguintes arenas podem ter sido objeto da prática anticompetitiva. São elas: Arena Amazônia, em Manaus (AM); Arena Pernambuco, em Recife (PE); Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ); Estádio Mineirão, em Belo Horizonte (MG); Arena Castelão, em Fortaleza (CE); Arena das Dunas, em Natal (RN); e Arena Fonte Nova, em Salvador (BA). A Superintendência investiga também licitações complementares aos certames principais, que podem ter sido afetadas pelos acordos ilícitos.
Com a instauração dos processos administrativos, os investigados serão notificados para apresentar defesa. Ao final da instrução, o Cade emitirá parecer opinativo pela condenação ou pelo arquivamento do caso em relação a cada acusado. As conclusões serão encaminhadas ao Tribunal do Conselho, responsável pela decisão final.
O Tribunal da autarquia pode aplicar às empresas eventualmente condenadas multas de até 20% de seu faturamento. As pessoas físicas, caso identificadas e condenadas, ficam sujeitas a multas de R$ 50 mil a R$ 2 bilhões. Também pode adotar outras medidas que entenda necessárias para a dissuasão da conduta.
Operação Panatenaico
O suposto esquema de corrupção na reforma do Mané é alvo de três ações penais no âmbito da Operação Panatenaico, que correm na Justiça. Segundo as apurações do MPF e da Polícia Federal, a partir de 2008, a obra tornou-se fachada para um esquema de corrupção que englobou agentes públicos e dirigentes das construtoras Andrade Gutierrez e Via Engenharia, envolvendo pagamentos de vantagens financeiras, fraudes de processo licitatório e desvio de recursos públicos.
As investigações da Operação Panatenaico apontaram envolvimento dos ex-governadores Arruda, Agnelo e do ex-vice Filippelli. Orçada em R$ 600 milhões, a arena brasiliense custou mais de R$ 1,6 bilhão. Estima-se que R$ 900 milhões foram desviados. A partir das delações premiadas de ex-executivos das empreiteiras Andrade Gutierrez e Odebrecht, foram identificados repasses aos três políticos, que chegaram a ser presos na época da operação.