Após aposentadoria, major da FAB volta às aulas para cursar medicina
Apaixonado pelos estudos, militar já é graduado em farmácia e química. Ele conseguiu ser aprovado no novo curso pelo Enem, em 2015
atualizado
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Quando Gilvan Jorge de Almeida chegou ao Distrito Federal, no início da década de 1970, ele era apenas uma criança de colo. Filho de um casal de baianos e caçula de 11 irmãos, foi o que teve mais chances de se dedicar aos estudos na família. E assim o fez. Desde que conheceu o amor pelos livros, ainda na infância, quando fazia o então “primeiro grau” em Brazlândia, Gilvan nunca mais parou de aprender coisas novas. Aposentado em 2015, após 30 anos de dedicação à Força Aérea Brasileira (FAB), o major da reserva graduado em farmácia e química agora quer se tornar médico.
Para entender como o militar aposentado chegou à aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o curso de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (Escs) do Distrito Federal, é preciso conhecer toda a jornada que o levou até ali.
Ao terminar o ensino médio em uma escola de Taguatinga, Gilvan decidiu, aos 18 anos, prestar um concurso para a Aeronáutica. Enquanto via seus amigos entrando para as Forças Armadas para cumprir o serviço obrigatório, o major seguia para o curso de formação como terceiro-sargento da FAB, em São Paulo, onde se formou técnico em eletrônica.
Ele enxergou uma oportunidade de se qualificar ainda mais quando estava trabalhando em regime de escala. “Foi possível conciliar o trabalho e a minha primeira formação, em farmácia”, lembra.
Gilvan conseguiu ser aprovado para o primeiro curso superior em 1997, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Na época, tinha de se dividir entre o curso integral, o expediente e a família. “Eu ficava o dia inteiro na faculdade, à noite ia para o trabalho e, no outro dia de manhã, tinha de voltar para as aulas. Nessa época, eu já tinha minhas duas primeiras filhas. Foi uma dificuldade para minha esposa, também, uma coisa que a gente superou”, narra.
Ascensão de patente
A conclusão do ensino superior deu ao militar as condições de que precisava para tentar se tornar um oficial. Ele prestou o concurso para segundo-tenente e também foi aprovado. O técnico em eletrônica então se especializava em telecomunicações. “Foi lá que eu atuei dentro da FAB como oficial e foi ali que me aposentei na graduação de major”.
Durante a implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), o então tenente passou seis meses comandando um destacamento do sistema em Vilhena (RO), mas a saudade de casa o trouxe de volta a Brasília. Na capital do país, Gilvan se tornou o oficial responsável por acionar as missões de busca e salvamento em casos de acidentes com aeronaves. Ele também era o delegado brasileiro do Cospas-SarSat, serviço internacional de buscas do qual o Brasil é signatário.
Fiz várias viagens internacionais para representar o Brasil e fui muito feliz dentro da FAB. Foi uma carreira de 30 anos. Começou quando eu era um jovem lá na cidade de Brazlândia e passou por todas essas regiões do país, adquirindo experiência, conhecimento. E me aposentei como major, em 2015.
Gilvan Jorge de Almeida
Professor e paizão
Quando viu a aposentadoria bater à porta, Gilvan começou a se preocupar com o que fazer para não ficar parado. Com o início da carreira cedo, ele acabou se aposentando jovem e precisava encontrar algo de que gostasse para se manter ativo. Professor por vocação na FAB, o major teve a ideia de cursar química e dar aulas para adolescentes.
A escolha do curso foi estratégica, pois poderia aproveitar créditos da formação anterior. “Em 2010, minha filha estava terminando o ensino médio, procurando fazer um vestibular, e eu resolvi estudar com ela. Apresentei as disciplinas com as quais eu tinha mais afinidade, como física, química e matemática, tirando como base as apostilas da escola dela. Eu chegava do trabalho e a gente estudava à noite, juntos”, conta.
Na época do vestibular, com o conteúdo fresco na memória depois de estudar por seis meses com a filha, Gilvan resolveu concorrer a uma vaga também. “Eu já tinha a intenção de fazer outro curso, e nós fizemos a prova: eu para química e ela para farmácia. Passamos juntos, mas ela nunca quis fazer uma [matéria] optativa comigo!”, brinca.
Nova carreira
Prestes a se tornar um militar da reserva, Gilvan conseguiu ser liberado pelo comandante para exercer a atividade que havia escolhido para a pós-aposentadoria: lecionar. Ele passou seis meses ensinando química no Colégio Militar e resolveu se inscrever no Enem. A surpresa veio quando o Ministério da Educação divulgou as notas e ele viu que o índice era suficiente para ser aprovado em medicina na Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal.
Gilvan chegou a ser confundido como pai de um dos calouros durante o trote. “Eu fiquei caladinho, lógico, não queria levar uma chuva de ovo dos veteranos”, brinca.
Eis que, depois de trabalhar como técnico em eletrônica, controlador de voo, comandante do Sivam, coordenador de um sistema internacional de buscas e professor, o major decidiu se tornar médico para ajudar as pessoas.
Doutor
Nos hospitais onde as aulas são aplicadas, ele ainda tenta se acostumar a ser chamado de doutor. Com um jaleco de estudante igual ao de qualquer aluno 30 anos mais jovem, Gilvan é constantemente confundido com médicos por pacientes, acompanhantes e funcionários. “Sou apenas um aluno como qualquer outro”, diz.
Eu me perguntei: vale a pena, nessa altura da minha vida, entrar num curso tão puxado? Coloquei tudo na balança e acho que não existe idade para a gente aprender coisas novas. Resolvi encarar. Hoje, estou no terceiro ano de medicina na Escs e muito feliz lá. Estou me realizando com isso.
Gilvan Jorge de Almeida, aluno de medicina da Escs
Concluir o curso é apenas o próximo passo. Gilvan já tem planos para depois disso: especializar-se em medicina da família. “O que tem me chamado atenção no curso são as relações humanas. A gente precisa entender o ser humano como um todo, completo, e não só como a doença que o aflige”, conclui.