Templo do Vale do Amanhecer pode ir a leilão por dívida com a TIM
Empresa cobra devolução de dinheiro depositado equivocadamente na conta bancária da filha do presidente da Ordem Espiritualista
atualizado
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Quem anda pelas ruas do Vale do Amanhecer, em Planaltina, a 45km do Plano Piloto, se depara com centenas de pessoas uniformizadas: são frequentadores do templo-mãe da doutrina homônima ao bairro. Com sorriso de uma orelha à outra e mãos erguidas à altura da cabeça, saúdam com um “Salve Deus” quem lhes cruza o caminho, inclusive os desconhecidos.
Mas o semblante alegre dos seguidores da doutrina escancara o desconhecimento deles acerca de um escândalo capaz de abalar uma comunidade espalhada por todo Brasil e exterior. Por causa de uma dívida da Ordem Espiritualista Cristã com a empresa de telefonia TIM, o templo, erguido há quase meio século, pode estar com os dias contados. Isso porque, para quitação do débito, a Justiça determinou a penhora e acena com o leilão do terreno, avaliado em R$ 5,2 milhões.
“É a primeira vez que alguém me aborda para falar sobre isso. Soube apenas de comentários”, contou Isnar Barbosa, um dos mestres – assim são chamados os homens integrantes da Ordem, enquanto as mulheres têm denominação de ninfas. Ele deu de ombros para o impasse, o qual classificou como tentativa de destruição da instituição. “Não tenho medo, porque o medo é um mal. Então, jamais me preocupei que alguém acabasse com o que já foi construído”, minimizou.
O mestre João* afirmou ao Metrópoles desconhecer o entrave capaz de pôr fim ao templo. “Deve ser algum mal tentando nos destruir. Mas somos muito mais fortes”, disse. Outro fiel ouvido pela reportagem, Luiz* engrossou o coro do mestre e afirmou que o presidente da Ordem jamais prestou satisfação ou explicou a situação aos frequentadores.A maioria dos fiéis faz vista grossa e acha que Deus vai resolver tudo, que a ação judicial é apenas obra do mal para tentar destruir o vale. Por isso, eles nem sequer cobram satisfações do presidente
Relato de um fiel do Vale do Amanhecer
Tudo começou com uma antena
O impasse teve início em 5 de março de 2014. À época, a TIM Celular S.A. alugava, havia 10 anos, um terreno de 144m² da Ordem, onde tinha instalado antena de transmissão de telefonia. A companhia, até então, fazia o pagamento pela área regularmente (R$ 952,67 mensais). Porém, transferiu R$ 581 mil para a conta bancária de Nitya Santos Zelaya Castro, filha do presidente da Ordem, Raul Oscar Zelaya Chaves. Ele é um dos quatro filhos da fundadora do Vale do Amanhecer, a clarividente Tia Neiva Chaves Zelaya (a Tia Neiva), e pai de Nitya.
De acordo com trecho de sentença do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), onde tramita o caso, a TIM solicitou a devolução do montante em 1º de abril daquele ano, alegando equívoco. Entretanto, no dia seguinte, a Ordem, após confirmar o recebimento do valor, restituiu à empresa R$ 300 mil, sob argumento de ter gastado o restante “com reformas, benfeitorias e pagamentos de débitos que se encontravam em atraso pela entidade”.
Ainda segundo a Corte, Raul alegou ter acreditado “que o depósito foi feito como doação”. E mais: o presidente da Ordem propôs abatimento do valor do aluguel como forma de reembolsar os R$ 281 mil devidos à empresa, a qual rechaçou a proposta, pois demoraria 24 anos para recuperar os recursos. Hoje, por causa da correção monetária e juros de mora, o valor da dívida supera os R$ 500 mil. Diante do impasse, a TIM, então, recorreu à Justiça.
Em março de 2016, a juíza de direito da 18ª Vara Cível do TJDFT determinou a penhora dos 10 blocos da Ordem – incluindo o templo-mãe – e o estacionamento. Nem mesmo comerciantes do local escaparam da decisão. Um deles é o artista plástico Joaquim Silva Vilela, dono de uma loja no terreno. Ele chegou ao Vale do Amanhecer há 40 anos e decorou diversas partes do lugar, inclusive o santuário principal.
A doutrina pode ser arrematada por alguém que não liga para espiritualismo, que pode acabar com tudo. Toda a área circundando o templo está arrolada, é algo assustador. O Vale do Amanhecer gira em torno disso
Joaquim Silva Vilela, artista plástico
Apesar da preocupação, Vilela, frequentador do santuário, demonstra alívio. Isso porque ele interpôs ação de embargos de terceiro após a Justiça ter determinado o leilão da área. Ou seja, argumentou que seu imóvel não deve ser penhorado como os outros blocos, pois o ganhou da fundadora do Vale do Amanhecer. Isso culminou na suspensão do processo, o qual já estava em fase de execução, pois a ação principal só deveria prosseguir após julgamento do embargo, de acordo com o entendimento do tribunal.
Dália Castro e Silva também pleiteia exclusão da penhora. O ganha-pão dela, um restaurante, entrou na sentença como parte do Bloco D. “Moro no vale há 51 anos, sou parte da história desse lugar. Meu imóvel, foi Tia Neiva quem me deu, tenho cessão de direitos”, afirmou.
O outro lado
A reportagem questionou o presidente da Ordem, Raul Zelaya, sobre o impasse. Porém, ele se esquivou das perguntas e disse que “está tudo sob controle”. “Isso é um assunto particular. A TIM não tem como provar que depositou esse dinheiro [R$ 581 mil]”, afirmou. No entanto, a reportagem obteve comprovante do depósito do montante.
A reportagem retomou contato com Raul na sexta-feira (9/2), mas o presidente da Ordem novamente se absteve de comentar o caso. Nitya, por sua vez, não foi localizada.
A TIM informou “que não comenta ações judiciais em curso, prezando pela ética e pelo sigilo de terceiros”.
História
Em 1969, a médium clarividente e caminhoneira Tia Neiva fundou a doutrina Vale do Amanhecer, ordem espiritualista que mescla diversas religiões. Entre elas, a católica apostólica romana e crenças africanas, como umbanda e quimbanda.
Tia Neiva morreu em 1985. Desde então, o Vale expandiu e hoje abriga cerca de 30 mil pessoas. Aproximadamente 400 delas praticam a fé no templo espiritualista, diariamente.
O local é aberto integralmente à comunidade e acolhe pessoas necessitadas. Inclusive, moradores de rua. Além disso, o Vale atrai visitantes do restante do Brasil e do exterior, de países como Estados Unidos, Portugal e Japão.
*Nomes fictícios, a pedido dos entrevistados