Soldado espancado no Batalhão Presidencial cobra R$ 500 mil da União
Advogada que entrou com a ação era militar e também acionou a Justiça contra o Exército. Caso foi revelado pelo Metrópoles em março
atualizado
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O ex-soldado Gabriel Reis, espancado por colegas de farda durante o período em que serviu ao Exército no Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), processou a União e pede do Estado uma indenização de R$ 500 mil. Gabriel é representado pela advogada Blenda do Nascimento, que também litiga na Justiça contra a corporação, em razão de um desligamento da 11ª Região Militar, onde trabalhou por mais de três meses, após aprovação em concurso público para oficial.
Blenda ficou na primeira colocação no certame entre os candidatos formados em direito. Mesmo sendo praticante de atividades físicas e com os trabalhos já iniciados no Exército, a advogada foi dispensada pela junta médica.
A defensora também denunciou a prática de assédio moral, violência psicológica, constrangimento e perseguição por ter questionado supostas irregularidades no concurso. Hoje, pede na Justiça a reincorporação aos quadros da instituição.
“É um ambiente muito complicado. E, como eles ficam acima do bem e do mal, não tem quem fiscalize. Fazem o que querem, especialmente com os recrutas.”
Após as agressões no BGP terem sido reveladas pelo Metrópoles em março, a advogada se interessou pela história de Gabriel e o procurou para defendê-lo, na Justiça, em uma ação por danos morais e materiais. O processo corre na 7ª Vara Federal Cível do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Para ajudar com as despesas de saúde do cliente, Blenda criou uma vaquinha on-line, com o objetivo de arrecadar R$ 1,5 mil.
Uma rotina de humilhações dentro da companhia provocou, além dos hematomas e ferimentos, sofrimento psicológico em Gabriel. Desempregado desde que foi dispensado do serviço militar, o ex-soldado estava engajado até dezembro de 2019, o que garantiria a permanência no emprego até o fim do ano. Sem dinheiro, o jovem buscou consultas gratuitas com psicólogos no Centro de Atenção Psicossocial (Caps), mas tem enfrentado dificuldade para ser atendido.
Na época das denúncias publicadas pelo Metrópoles, Gabriel pediu para ter o nome preservado. Hoje, decidiu revelar a identidade. Além dele, outros dois colegas de farda contaram a rotina de abusos, que chegou a ser filmada em mais de uma ocasião.
Veja:
Reintegração
A defesa pediu a reintegração do ex-soldado ao serviço militar, com a condição de incapacidade temporária. O objetivo era garantir que ele continuasse recebendo os salários e demais benefícios pelo período necessário à conclusão do tratamento de saúde. A advogada também solicitou a antecipação da indenização, no valor de R$ 30 mil, para auxiliar na compra de medicamentos e nos gastos com psicólogo.
A decisão do juiz Cleberson José Rocha, no entanto, foi negar os pedidos. “Conforme relatado, o autor afirma que sofreu agressões severas de seus colegas do Exército enquanto prestava serviço, fato este que demanda ampla dilação probatória, sendo extremamente temerário, no caso, a concessão de tutela de urgência sem o exercício do contraditório”, escreveu o juiz federal.
“Também observo que consta no laudo de exame de corpo de delito que as lesões supostamente causadas pelas agressões não resultaram em qualquer incapacidade laborativa, não havendo que se falar, portanto, em afastamento para tratamento de saúde”, completou o magistrado.
Nos dois anos em que serviu no batalhão, Gabriel foi espancado nove vezes e desenvolveu sintomas de síndrome do pânico. Tem dificuldades para dormir, não sai de casa desacompanhado. Recentemente, contou, foi perseguido por um de seus agressores no Centro de Taguatinga.
Rotina de agressões
No BGP, existe uma regra não escrita de que os militares lotados na unidade devem apanhar para “engrossar o couro”. As sessões de espancamento praticadas por soldados contra colegas de mesma patente ocorriam pelos motivos mais fúteis e serviam como castigo diante de qualquer mínimo desvio disciplinar.
“Tudo era motivo para apanhar”, resume Gabriel sobre os dias de farda. Quem faltasse ao serviço ou chegasse atrasado era recebido pelos colegas aos tapas. O mínimo desleixo com a aparência ou limpeza do uniforme também era razão para uma “cautela”, nome dado pelos soldados aos castigos. Coturno não engraxado, farda suja ou amarrotada, cabelos ou barba malfeitos resultavam em surras de cinto e até com pedaços de madeira.
Quando faltavam motivos, qualquer pretexto servia aos agressores para começarem uma sessão de espancamento. Receber o primeiro salário, voltar das férias ou fazer aniversário eram razões para membros de baixa patente da Guarda Presidencial se juntarem em torno de uma vítima.
“Tábua do castigo”
Um dos instrumentos usados nas agressões tornou-se lendário dentro do BGP. Um pedaço de madeira pouco maior do que uma folha A4 era temido no batalhão. A tábua era usada pelos agressores para bater nos soldados. Depois de apanharem, as vítimas tinham seus nomes anotados na placa.
Ao fim do período que um militar temporário pode servir, a “relíquia” era disputada por aqueles que se despediam do Exército: a tábua continha os nomes de todos que apanharam naqueles últimos oito anos. No novo ciclo, outro pedaço de madeira era providenciado para continuar o violento modo de garantir a disciplina adotado no Batalhão da Guarda Presidencial.
Negativa de atendimento
Conforme a hierarquia estabelecida pelos próprios soldados, os de menos idade devem obedecer aos mais velhos. Caçula do quartel, Gabriel era também um dos que mais apanhavam. “Eu era acordado de madrugada para lavar pratos e limpar banheiros. Não podia dizer não.”
A agressão mais recente praticada contra o ex-soldado ocorreu em 20 de fevereiro de 2019. Após apanhar e relatar a situação ao capitão da companhia, o agora ex-militar diz que foi dispensado e mandado de volta para casa.
Com muitas dores naquele dia e dificuldade para caminhar, o rapaz conta que pediu ajuda a um cabo para ir até a enfermaria. “Ele me viu lá e me chamou até a sala dele, ou seja, não me deixou ser atendido. E disse que eu estava desobedecendo. Ele pegou o laudo com o relatório do meu atendimento, rasgou e me mandou embora”, narra.
A situação ganhou atenção dos superiores após os soldados ameaçarem levar o caso à Justiça e à imprensa. “São as duas únicas coisas de que eles têm medo. Quando a gente falou que levaria para a mídia, reuniram todos que agrediam e os expulsaram do Exército”, disse um colega de Gabriel que pediu para ter o nome preservado. Ele também deixou a corporação. De acordo com o ex-militar, 12 pessoas foram desligadas da Força.
Outro lado
Questionado pela reportagem, o Exército informou que o comandante do Batalhão da Guarda Presidencial determinou a abertura de uma sindicância interna para apurar os fatos após tomar conhecimento do ocorrido. Segundo a Força, o processo administrativo de averiguação foi concluído e não foi identificada a ocorrência de crime de natureza militar ou comum. “Ficou evidente, no entanto, a prática de transgressões disciplinares e todos os militares envolvidos foram licenciados das fileiras do Exército”.
A corporação informou, também, não ter recebido notificação oficial sobre a ação movida pelo ex-soldado.