Jovem diz que teve quadro furtado por religiosas: “Falaram que era endemoniado”
Jovem conta que a obra foi levada por religiosas que foram até sua casa fazer oração. Para a pintora, amiga dela, trata-se de preconceito
atualizado
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Uma jovem de 21 anos, moradora de Samambaia, relata ter tido um quadro furtado de dentro da sua própria casa, em Samambaia. As autoras do delito seriam missionárias evangélicas que consideraram a pintura uma obra “endemoniada”. O caso ocorreu na última segunda-feira (20/9).
A assessora de vendas, que pediu para não ser identificada, pretende registrar um boletim de ocorrência nesta semana. Amiga dela, a artista Emannuelle Lima, 21, que pintou e vendeu o quadro para a jovem, diz acreditar que “foi um ato de racismo, de intolerância religiosa e de fanatismo”.
Artista independente, Emannuelle montou um ateliê na casa onde mora. Ela usa o local como ateliê e pinta as telas há aproximadamente dois anos. O quadro que teria sido furtado nessa segunda foi pintado por ela no meio do ano passado. Nomeada “A união”, a arte foi a primeira pintura autoral que Emannuelle vendeu para uma cliente.
“A prioridade que minha amiga queria na obra eram mulheres negras, então quis fazer algo original e sair um pouco da minha zona de conforto. No final, a obra significa a união mesmo”, descreve.
A artista levou quase três semanas para desenvolver a ideia e 16 dias corridos para executar a obra. Em agosto de 2020, entregou a pintura para a amiga.
“Eu já vendi outros quadros, mas autoral assim, no caso de eu fazer uma pintura exclusiva, foi o primeiro. A madeira dos quadros que eu pego para fazer são madeiras que eu acho na rua, então eu pego a madeira e lixo. Eu que faço o quadro, do zero, e compro o tecido. Então, esse foi realmente o primeiro quadro autoral que eu vendi por encomenda”, relata.
Ao saber do ocorrido, a pintora divulgou o caso nas redes sociais e lamentou a perda da obra. Veja a publicação feita por ela nessa terça-feira (21/9):
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Entenda
A jovem dona do quadro contou ao Metrópoles que estava trabalhando na noite de segunda, quando o pai, de 67 anos, e a mãe, de 56, receberam o grupo de cinco mulheres na casa deles, em Samambaia Norte, para um momento de oração. “Eu estava trabalhando. Por volta de 19h30, 20h, foi um grupo de uma igreja na minha casa. Uma dessas mulheres é amiga da minha mãe há muito tempo, o resto a gente não sabe o nome, não sabe quem é”, conta.
“Eu não estava em casa, mas meu quarto estava aberto. Elas foram na minha casa orar pelos meus pais, que são cristãos, mas não nesse nível fanático. Uma delas disse que começou a ter uma visão que tinha algo dentro da casa que estava atraindo coisas ruins, que o diabo estava usando para destruir minha família”, narra.
A assessora de vendas soube que elas teriam ido até seu quarto, onde o quadro estava preso na parede, e pedido para o pai dela retirar a obra dali. “Meu pai desparafusou, aí elas oraram em cima do quadro e, depois da oração, meu pai recolheu o quadro e colocou na garagem da casa.”
“Na hora de ir embora, uma das irmãs pegou o quadro sem autorização do meu pai e da minha mãe. Elas também pegaram cigarro da minha mãe sem autorização e jogaram fora”, afirma a jovem. “Em nenhum momento meu pai ou minha mãe autorizaram – ou eu mesma autorizei, porque eu sou a dona do quadro – que elas levassem”, completa.
Desde então, a moradora da Samambaia não soube mais da pintura e acredita que possa ter sido destruída. “Minha mãe viu algumas delas indo até o bar que fica na frente da minha casa comprar isqueiro, (possivelmente) para tacar fogo”, diz.
Na mesma noite, a jovem mandou mensagem para uma das missionárias, pedindo que a pregadora devolvesse a obra. Veja a troca de mensagens:
“Endemoniado”
Emannuelle Lima, a artista, diz que nunca tinha passado por situação como essa. “As pessoas que compram meu trabalho gostam bastante. Eu faço tudo com muito carinho, toda pintura que eu faço eu levo muito a sério, faço com muita responsabilidade, e essa foi a primeira vez mesmo que esse tipo de coisa aconteceu comigo.”
A pintora relata, ainda, que tentou entrar em contato com uma das pregadoras por telefone, mas que não teve resposta. “Tentei ligar para ela ontem, mas na terceira tentativa, quando ela atendeu, não falou nada. Eu falei: ‘Oi, é a fulana?’ E a pessoa só ficou ouvindo. Não falei meu nome, nada, e ela só ficou ouvindo”, comenta.
“Definitivamente, acho que está totalmente ligado com racismo e com toda intolerância, porque dentre todos os objetos da casa, por que esse quadro em específico ia ser endemoniado? Por que ele carrega toda essa energia negativa? É por causa das mulheres pretas que estão no quadro? É por conta do turbante que elas estão usando? É por conta da questão dos olhos? Eu não sei, queria muito que ela me explicasse porque ela acha que o quadro significa tanta coisa negativa assim”, reclama a jovem.
Para ela, a sensação é de impotência neste momento. “Eu não sei mais o que eu posso fazer, se eu posso abrir queixa, se eu posso mandar mensagem para ela. Até para mandar mensagem para ela eu fico com medo de ela querer usar isso contra mim, de falar que estou perseguindo. Porque a gente sabe muito bem como é o nosso sistema, como ele persegue pessoas pretas”, diz. “Essa violência veio contra o meu trabalho e mesmo assim eu não consigo ter a força suficiente para poder fazer alguma coisa contra”, lamenta.
No Instagram, ela fez desabafos nos stories e o caso repercutiu entre os seguidores. Veja algumas das publicações:
O Metrópoles entrou em contato com uma das missionárias. Por telefone, ela disse: “Não tem ninguém com esse nome aqui”. Em seguida, encerrou a ligação.