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Lembra do Martuscelli? Professor deixa matemática para manobrar navios

Um dos docentes de matemática mais famosos nas décadas de 1990 e 2000 hoje ganha mais de R$ 100 mil como prático, em Santos (SP)

atualizado

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Arquivo pessoal
mauro martuscelli
1 de 1 mauro martuscelli - Foto: Arquivo pessoal

O ritual de aula feito por um dos professores mais populares de Brasília nos anos 1990 e 2000 está na lembrança de quem passou pelas salas do colégio e cursinho Objetivo. Antes de abarrotar a lousa com fórmulas matemáticas, Mauro Martuscelli escrevia, no canto superior esquerdo da lousa, seu principal apelido, seguido de um nome que intrigava os alunos, mas sempre prenunciava frase de efeito bem-humorada. “Martu Indiana Jones”, relembra o professor, completando: “Não é um Harrison Ford, mas é o templo da perdição”.

Os estudantes reagiam em uníssona onda de gargalhadas. Com essa dose de palhaçada, Martu prendia mais a atenção dos aspirantes a universitários. “Primeiramente, eu ganhava o aluno, brincando, trazendo energia dele para mim. Depois, começava a matemática”, recorda. Assim, o docente marcou a vida de um sem-número de estudantes até 2006, quando iniciou uma reviravolta profissional ao tornar-se, exclusivamente, prático de navios e receber remuneração que pode superar R$ 100 mil.

“Os alunos também me sacaneavam. Uma vez, cheguei na sala, e estava escrito no quadro: ‘Martu Quiuí’. Depois, chegou até mim um bilhetinho: ‘por fora, tem pelo, mas por dentro é uma fruta’”, relembra.

Aluno de Martu de 2002 a 2005, André Tunes, 32, descreve o jeito do mestre. “Ele chegava superalegre nas aulas, falando alto, brincando, 7h15 da manhã, sempre com piadinha e alto-astral”, recorda-se. “Os estudantes passavam a ver a matemática com outros olhos. Havia alguns que assistiam às seis aulas dele na manhã.”

A relação entre André e o professor extrapolou a sala de aula. Hoje, são amigos, apesar de viverem em cidades distintas. André, em Belém, no Pará. Martu, padrinho de casamento do ex-aluno, reside em Santos (SP).

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Ele organizava os aulões “Martu Forrest Gump”, em que contava sua história e ensinava matemática, além de arrecadar alimentos para creches
Ao lado da mulher, Denise Martuscelli, o prático janta com o ex-aluno e hoje companheiro de profissão, André Tunes
O pupilo de Martu vive em Belém (PA), mas visita o mestre ao menos duas vezes por ano
Desenho de aluno anônimo, que deixava as ilustrações nas mesas de Martu
O autor das figuras é desconhecido pelo ex-professor, que as guarda com carinho em um cofre
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Martu lecionou para ensino médio e cursinho pré-vestibular

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Ele organizava os aulões “Martu Forrest Gump”, em que contava sua história e ensinava matemática, além de arrecadar alimentos para creches

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Ao lado da mulher, Denise Martuscelli, o prático janta com o ex-aluno e hoje companheiro de profissão, André Tunes

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O pupilo de Martu vive em Belém (PA), mas visita o mestre ao menos duas vezes por ano

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Desenho de aluno anônimo, que deixava as ilustrações nas mesas de Martu

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O autor das figuras é desconhecido pelo ex-professor, que as guarda com carinho em um cofre

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Em 2006, Martu concorreu a deputado distrital, pelo PSB, mas não se elegeu

Reprodução

Popularidade
Martu credita o início da gloriosa carreira de professor a um acaso, quando ainda vivia na cidade natal, São Paulo. Em 1990, aos 24 anos e recém-formado em engenharia naval pela academia militar da Marinha no Rio de Janeiro, pediu uma oportunidade para ser monitor no cursinho pré-vestibular Objetivo. Conseguiu. Duas semanas após o início das aulas aos vestibulandos, Martu foi convocado a substituir um professor de matemática que estava doente.

“Um dos diretores me perguntou: ‘Você não é o Martuscelli?’. Respondi que sim. Ele disse: ‘Então vá lá e dê aula no lugar do professor’. Falei que era só um monitor, nem tinha diploma em matemática”, rememora. “Não adiantou. Por algumas aulas, substituí o colega doente, para alunos de oitava série. Como eu sabia muitas brincadeiras relacionadas à matemática, foi um sucesso.”

Apesar do êxito naquelas aulas, Martu avisou ao diretor que ficaria apenas na monitoria. A notícia causou um rebuliço. Alunos e pais reclamaram e o convenceram a se tornar professor efetivo. À época, ele cursava direito na Universidade de São Paulo (USP), queria ser promotor por causa da prima, pois ela “ganhava bem” nessa profissão. A monitoria era, apenas, um meio de driblar o arrocho financeiro.

Após quatro anos, ele ganhou notoriedade. Aceitou convite para lecionar na filial do cursinho em Santos, época em que alcançou o recorde de 19 aulas ministradas em um dia. Não demorou para pintar a chance de trabalhar em Brasília, aonde desembarcou em 1995.

“Eu não queria ir. Um diretor ligou e pediu para eu oferecer proposta. Pensei: ‘vou chutar o pau da barraca e pedir muita grana, para eles recusarem’. Cinco minutos depois, esse diretor me ligou e disse: ‘você vem para Brasília na semana que vem’. Aí eu passei a ganhar mais que minha prima promotora

Mauro Martuscelli

Nos 11 anos em que viveu na capital da República, Martu figurou entre os mais populares docentes da época – no auge, em 2006, teve três contas no Orkut, por causa do limite de 999 amigos por perfil. Nesse período, tornou-se também coordenador de cursinho e transformou vidas de alunos, como a de Rodrigo Vieira, 37, a quem deu o incentivo que faltava para o rapaz realizar o sonho profissional.

“Eu era ‘quebrado’, mas o Martu me ofereceu bolsa integral, pois eu estudava muito. Se não fosse por isso, eu teria de sair do cursinho, por falta de dinheiro”, recorda Rodrigo, que passou no vestibular de medicina da Universidade de Brasília (UnB) – em primeiro lugar geral – em 2001. Hoje, ele é cirurgião plástico na cidade.

Arquivo pessoal
Martuscelli posa com seus ex-alunos Rodrigo Vieira (à direita) e Lucas Moura Viana

 

O irmão de Rodrigo trilhou história semelhante com Martu. André Vieira também recebeu bolsa integral do professor no Objetivo, passou no vestibular da UnB e tornou-se ortopedista.

Adeus
Em 2006, Martuscelli teve uma despedida forçada das salas de aula. Devido à repetição extenuante de escrever e apagar as lousas, ele sofreu lesão no ombro esquerdo. Passou por duas cirurgias – a primeira delas foi mal-sucedida – e ficou licenciado da profissão por dois anos. Ainda naquele ano, disputou o cargo de deputado distrital, pelo PSB, mas não foi eleito. Aproveitou o período para estudar, das 7h às 2h e, assim, reavivar um sonho profissional.

Martu contrariou familiares e amigos – a única que o apoiou, segundo ele, foi a mulher, Denise Martuscelli – e debruçou-se sobre a chance de se tornar prático de navios. Falhara cinco vezes antes de, em 2008, comemorar a aprovação, aos 42 anos.

O professor, então, fez as malas e se mudou para Santos, onde vive com a mulher e dois filhos, Enzo, 9, e Luigi, 3. A primogênita, Nicole, 20, estuda medicina nos Estados Unidos. No litoral paulista, Martuscelli trabalha como prático. Ele tem a incumbência de zelar pela segurança marítima, fazendo manobras de navios próximos a trechos de costas, baías e portos.

“Pego uma lancha e vou ao encontro de embarcações de todo o mundo que se aproximam da costa. Entro nelas, e os comandantes passam a acatar minhas ordens, porque conheço o trajeto até ser atracado, ventos, clima”, descreve. “Evitamos que os navios atinjam lama fluida ou pedras, para impedir acidentes”, acrescenta.

Para se tornar prático de navios no Brasil, é preciso ter nível superior em qualquer área e possuir, no mínimo, licença para conduzir embarcações pequenas na categoria mestre-amador. Os novos profissionais podem optar por abrir empresa, unir-se a uma já existente ou atuar de maneira independente. Por não ser empregado, o prático não possui salário nem recebe subsídios do Estado. Assim, corre os riscos inerentes a qualquer atividade privada.

Cabe, então, aos armadores (grandes transportadores marítimos) pagar pelos serviços da praticagem, ficando o Estado responsável por regulamentar a profissão, definir as regras de atuação e fiscalizar o exercício da tarefa.

Estima-se que a remuneração mensal chegue a R$ 200 mil nos principais pontos da costa brasileira, onde o tráfego de embarcações é maior. Porém, os reais valores são desconhecidos, pois práticos não têm obrigação de abrir seu sigilo fiscal.

Veja uma das manobras executadas por Martu no litoral santista

 

Saudoso, Martu relembra a época de professor, mas descarta um retorno, ainda que tenha tempo sobrando, pois trabalha um dia e folga dois. Apenas seus herdeiros ainda têm a chance de colher os ensinamentos de Martuscelli, quando lhe pedem socorro nos deveres de casa.

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