Humilhação, tortura e morte: vídeos chocantes mostram rotina de pacientes em clínica clandestina
Um dos vídeos obtidos pelo Metrópoles mostra um paciente sendo obrigado a entrar nu, de madrugada, dentro de uma piscina
atualizado
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Em uma área rural no Entorno do Distrito Federal, homens jovens e idosos que sofrem com a dependência química são submetidos, diariamente, a humilhações e sessões de tortura que já resultaram até em mortes.
Vídeos chocantes, aos quais o Metrópoles teve acesso, mostram pacientes sendo obrigados a entrar na água nus de madrugada, dormir no chão em meio à sujeira e ficar amarrados em posição semelhante à que escravos eram punidos no Brasil há mais de 130 anos (foto em destaque).
Veja abaixo alguns vídeos das humilhações:
Todos esses episódios cruéis se passavam dentro da Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas, situada na região das Chácaras Marajoara, em Luziânia (GO). E, apesar de boletins de ocorrência registrados na Polícia Civil de Goiás (PCGO), o espaço permanece aberto e recebendo novos pacientes.
A reportagem conversou com algumas das vítimas que sobreviveram ao martírio na clínica de reabilitação, que, segundo a Federação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Fenact), funciona de forma clandestina e é administrada por Tiago de Morais Araújo, que se apresenta como enfermeiro.
Fome, dopagem e mortes
A rotina dentro da casa era de dor e sofrimento. A lista de supostos crimes cometidos por Tiago e seus funcionários é extensa. Ele é acusado de bater, humilhar e permitir circulação de drogas no local.
Ainda de acordo com relatos de “sobreviventes”, não era permitido manter qualquer tipo de contato com a família, e havia a prática de dopagem com medicamentos sem prescrição médica. Em casos mais extremos, muitos, inclusive, disseram passar fome, pois as refeições eram rigidamente controladas por Tiago e seus monitores.
No caso mais aterrorizante, um interno morreu, em março deste ano, após ser obrigado a ingerir doses cavalares de medicamentos controlados. Um dos homens que conversou com o Metrópoles presenciou a cena:
“Eu fiquei internado por dois meses. E, enquanto estive lá, presenciei acontecimentos horríveis. Muitos pacientes eram medicados à força e em alta quantidade quando se comportavam mal. Em um desses episódios, um homem chegou a morrer. Ele estava alcoolizado e, assim que chegou na clínica, o doparam. Quando o dia amanheceu, infelizmente, estava morto”, contou. Apesar de diversas testemunhas confirmarem o óbito, a PCGO não divulgou mais detalhes da investigação.
Cerca de um mês depois, em 24 de abril, outro paciente apareceu morto na Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas. Carlos Eduardo Rodrigues, 44 anos, não passou sequer 24 horas sob os cuidados de Tiago. O homem foi internado na tarde do dia 24/4 pela mãe e, durante a noite, faleceu. O óbito dele é investigado pela PCGO, por meio Grupo de Investigação de Homicídios (GIH) de Luziânia.
“Danone”
Os internos, conforme narra um outro ex-paciente da clínica clandestina, eram sedados com uma mistura chamada de “Danone”. A combinação era composta por Neozine de 100 mg com 50 gotas de Clonazepam. De acordo com ele, as vítimas medicadas chegavam a ficar até três dias dormindo sem ingerir água e alimento.
Outro medicamento utilizado na dopagem era o Rapilax, que serve para o tratamento de prisão de ventre – em alta dosagem, o paciente acaba urinando e defecando involuntariamente.
Falta de estrutura e superlotação
O espaço disponibilizado aos internos não é apropriado para a quantidade de pessoas que atende. A casa, com três quartos, aloja cerca de 60 homens. Por falta de estrutura, alguns dormem no chão. Além disso, a residência tem apenas um banheiro, sem descarga, o que torna a higiene precária.
O local também não conta com a presença de psiquiatras ou enfermeiros para oferecer tratamento e suporte devidos.
Outra vítima dos maus-tratos relatou que, além da mensalidade no valor de R$ 900, era cobrada uma quantia extra para comprar comida e produtos de higiene pessoal, mas os internos não tinham acesso aos itens e, quando tinham, os insumos não condiziam com o valor enviado pelos familiares. Era normal o fornecimento de um rolo de papel higiênico para uso de até 60 pessoas.
“O mais revoltante é que nós estávamos pagando um valor superalto para sermos tratados daquela forma. Eu fui para a clínica para tratar um vício, mas parecia que estava na cadeia. Nos ofereciam uma comida péssima e sentíamos muita fome, porque era basicamente carne com osso”, desabafou um rapaz, que preferiu não se identificar.
“Urinava de tanta dor”
A humilhação no local era cotidiana. Um deles contou à reportagem que diversos internos eram agredidos com arma de choque e chegavam a urinar involuntariamente de tanta dor. “Os responsáveis pela clínica não têm preparo nenhum. Vários colegas que estavam lá tinham esquizofrenia e não recebiam o tratamento correto. Os funcionários os agrediam, faziam tratamento de choque com taser, e os deixavam amarrados. Esses abusos traumatizaram muito”, afirmou.
Em uma suposta tentativa de fuga, um dos pacientes com esquizofrenia foi queimado com cabos de energia na região do tórax e da barriga. Mesmo dias depois, o rapaz carregava cicatrizes na região.
Em outro vídeo obtido pelo Metrópoles, é possível ver um homem sendo obrigado a entrar nu na piscina da clínica de madrugada. Ao fundo, funcionários riem e debocham da situação.
“Aquele lugar é pior que uma prisão, parecia que eu estava em uma senzala. Rezei por muitos dias, porque achei que ia morrer lá dentro”, contou um ex-interno.
Mesmo com o fim dos dias de agonia depois de sair da clínica, as vítimas relatam que carregarão marcas pelo resto da vida. “Ainda sinto muita tristeza por tudo que passei e espero que a justiça seja feita. Nós fomos tratados como se não fôssemos seres humanos, e carrego traumas até hoje: não consigo mais dormir, tenho várias crises de pânico e sonhos por conta de tudo que aconteceu”, disse uma pessoa.
Familiares
Ainda conforme as denúncias investigadas pela PCGO, Tiago utilizava a manipulação como uma carta na manga para enganar as famílias dos pacientes. “Encontrei essa clínica pela internet e, no início, parecia ser de confiança. A pessoa que entrei em contato foi superatenciosa, me ligou para explicar a dinâmica e me mandou várias fotos. No desespero, acabamos optando por fazer internação lá, mas me arrependo amargamente”, contou uma familiar de um dos ex-internos.
“Aos poucos, fui percebendo que tinha algo de errado. Não me enviaram o contrato e não permitiam que eu tivesse contato com meu parente. A minha família só ficou sabendo de tudo que estava acontecendo quando esse familiar conseguiu nos falar escondido, porque até as ligações são monitoradas”, complementou.
Estratégia
No local onde atualmente funciona a Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas operava, anteriormente, a Comunidade Terapêutica Restauração (CTR). Essa última teria sido fechada por também supostamente maltratar pacientes. O espaço mudou apenas de nome, mas manteve a rotina de sofrimentos dos pacientes.
Para driblar a Justiça, o suposto enfermeiro abriu um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) identificando a empresa como uma comunidade terapêutica, mas, na verdade, oferece serviço de clínica psiquiátrica com internações compulsórias.
O delegado da Região Centro-Oeste da Federação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Fenact), Henrique França, explica que abrir CNPJ como se fosse comunidade terapêutica é uma estratégia utilizada por criminosos para driblar regras. “O CNPJ é de comunidade terapêutica, mas os donos dessas clínicas clandestinas oferecem o serviço de clínica psiquiátrica. As exigências para abrir uma CT são menores do que as das clínicas, então os maus-tratos acabam acontecendo, porque muitas vezes esses locais não têm recursos, profissionais preparados e estrutura para fazer o tratamento psiquiátrico”, esclareceu Henrique.
Ele ainda ressaltou que esse tipo de caso mancha a imagem das comunidades terapêuticas sérias, como a Salve a Si e Casa Maria de Magdala, reconhecidas internacionalmente e que já ajudaram milhares de homens e mulheres a se libertarem do vício de álcool e drogas.
“As comunidades terapêuticas são uma modalidade de acolhimento voluntário, transitório e residencial, sem cerceamento de liberdade, onde o indivíduo pode ir embora na hora que quiser, e ele só é acolhido voluntariamente. O serviço oferecido é sério, com tratamento humanizado contra a dependência química. As pessoas que cometem esses crimes querem apenas lucrar com o sofrimento das famílias dos pacientes”, pontuou Henrique França.
Em nota, a Fenact afirmou que repudia essas falsas comunidades terapêuticas e pede que todo o rigor da lei seja aplicado a estes estabelecimentos clandestinos e seus responsáveis.
Luta antimanicomial
A Luta Antimanicomial surgiu justamente por casos como os registrados dentro da Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas. O movimento tem o intuito de garantir que direitos de pacientes sejam preservados e impedir situações de maus-tratos.
O psiquiatra Anibal Okamoto esclarece que, na maioria dos casos, os dependentes químicos não são vistos como seres humanos. “Infelizmente, essas pessoas não são ouvidas. O preconceito que existe em relação à adicção ainda é bem forte, então essas queixas muitas vezes são deixadas de lado”, explicou.
Além disso, o profissional ressaltou que a falta de fiscalização acaba facilitando que maus-tratos sejam recorrentes.
O outro lado
Procurado pela reportagem, Tiago de Morais Araújo afirmou que os relatos são falsos e não aconteceram dentro da Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas, embora nos vídeos que mostram as agressões seja possível ver inspetores com o jaleco da clínica.
“Eu não trabalho dessa maneira. Minha comunidade é abençoada e essa situação não acontece dentro dela”, alegou.