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Garimpo do Planalto: veja as primeiras ocorrências de estupros e assédio na construção de Brasília

Registros mostram que violências contra mulher, como estupro e agressão, eram recorrentes na construção da cidade, bem como a impunidade

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Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF
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1 de 1 Imagem construcao de brasilia Mário Fontenelle - Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF

A construção de Brasília contava com uma proporção desequilibrada entre homens e mulheres, sendo quase o dobro do gênero masculino em comparação ao feminino. Os dados são do Censo de 1959, disponibilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE). Elas estavam em meio às obras acompanhando maridos, eram de cidades vizinhas, prostitutas, cozinheiras, lavadeiras, parteiras, entre outras.

Em meio àquela poeira, nem sempre eram respeitadas e muitas foram vítimas de crimes diversos, como estupro, assédio, importunação sexual, violências domésticas e ameaças de feminicídio. Delitos graves que ocorreram com frequência, mas que só foram tipificados anos depois. Até pela falta de uma legislação, havia relatos de que a solução encontrada pelos responsáveis da Segurança Pública da época era uma “conversa séria” com o agressor. Veja as ocorrências: 

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Transformar o que era Cerrado nativo em uma nova capital erguida em quatro anos era o desafio. A missão foi cumprida: Brasília foi inaugurada em 21 de abril de 1960. No entanto, enquanto a meta era cumprida, violências brutais contra as mulheres ocorreram no meio do Planalto Central. Trabalho incessante e estressante, aliado a álcool, armas e a sensação de que a mulher fosse posse ou que pudesse ser dominada resultaram em ocorrências quase que diárias.

“A construção de Brasília, com as devidas proporções, parecia um cenário de garimpo”, comparou o coordenador de projeto do repositório digital do Arquivo Público, o historiador Wilson Vieira Junior. As ocorrências eram registradas quase que diariamente pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) – empresa criada para administrar tudo durante a construção, inclusive a Segurança Pública.

Os documentos aos quais o Metrópoles teve acesso estão disponíveis no Arquivo Público do Distrito Federal, em quatro caixas, com os relatos a partir de 11 de dezembro de 1957. São 2.528 páginas com descrições diversas de pessoas detidas naquele período.

“Brasília só é construída porque existe um trabalho invisibilizado das mulheres por trás”, contou também a coordenadora do projeto do repositório digital do Arquivo Público, Luciana Jobim. Naquele pedaço de Brasil, até nas ocorrências, as mulheres aparecem como coadjuvantes. Muitas não identificadas, com causas de morte ignoradas e, em alguns casos, sem solução para as violências relatadas.

Conheça algumas violências sofridas pelas mulheres enquanto construía-se uma capital no meio do Brasil: 

Em 19 de fevereiro de 1958, Patrocínia da Silva compareceu à divisão responsável pelas ocorrências denunciando ter sido vítima de estupro. De acordo com o relato, ela estaria em frente ao Hotel Souza, conversando com o namorado, José Cândido de Souza, quando dois homens, identificados como Vicente Alencar Araújo e Sebastião Pereira dos Santos, teriam se apresentado como policiais, mandando José Cândido se retirar.

Após expulsarem o namorado do local, eles carregaram a moça até um matagal atrás da “2ª avenida” -– os arquivos não explicam em que região exatamente era a tal 2ª avenida. “Obrigaram-na a manter relações sexuais com o primeiro deles, sob violência”, detalhava a Ocorrência nº 530 daquele ano. “Declara a depoente (Patrocínia) que Vicente disse-lhe que já está acostumado a fazer isso, e que com a polícia era assim.”

O documento tratava o estupro vivido por Patrocínia apenas como “relações sexuais”, relatando que assim que terminou, Vicente teria ordenado à vítima a “procurar seu rumo”. Nesse momento, o namorado de Patrocínia encontrou a moça. Ele estava com a polícia e os dois homens acabaram presos.

Às 18h20 de 21 de fevereiro, Vicente foi colocado em liberdade e “avisado” de que deveria sair de Brasília. “Por ficar provado que Sebastião não foi culpado do ‘incidente’, ele foi posto em liberdade”. O cúmplice foi, então, avisado de que não poderia participar novamente de um estupro, caso contrário seria expulso de Brasília.

Naquele pedaço de Brasil, as punições podiam ser diferentes para cada caso: estar bêbado na rua resultava em passar a noite na cadeia; andar armado era passível de repreensão pelo coronel da antiga divisão da segurança pública; autores de delitos mais graves acabavam “deportados” de Brasília – termo muito usado à época.

Em 10 de junho de 1957, José dos Santos foi identificado como o homem que estuprou uma das lavadeiras presentes na construção. Pelo registro, ele teria   “[Com] força e agindo com violência contra a sexualidade” delas. Apesar da gravidade do crime, foi preso, inicialmente, “por se encontrar em alto estado de embriaguez, em prática de desordem no Núcleo Bandeirante depois de sacar uma arma para agredir um senhor ali residente”. A informação está presente na Ocorrência nº 932.

“Propostas desonestas à mulher”

As violências sexuais eram registros constantes durante os anos de construção de Brasília, assim como assédio e importunação sexual. Em 28 de novembro de 1957, Ricardo Borges registrou que sua esposa estava sendo molestada por um colega de trabalho. De acordo com o relato, Adauto da Costa, “aproveitando a ausência do queixoso (Ricardo), vai à casa fazer proposta desonesta à mulher”.

A Ocorrência nº 341 ainda indicava Adauto como “sedutor”. Como punição, ele foi “severamente repreendido, ficando avisado de sindicância para apurar os fatos”. Ele chegou a ficar detido por uma semana.

Morador do Núcleo Bandeirante, Wilson de Souza denunciou um homem identificado apenas como De Assis por importunar a filha menor de idade. “O citado indivíduo passou todo o dia rondando sua casa e chegou ao cúmulo de perguntar se a filha queria manter relações sexuais com ele.” O depoimento ainda citou que o homem fez outras propostas indecorosas. De acordo com a Ocorrência nº 415, de 5 de janeiro de 1958, De Assis “dá a impressão de ser totalmente maluco ou tarado”. O homem foi preso.

Na mesma linha, Alzira Alves foi à divisão para relatar que estava sendo perseguida por Lionel Arruda quando saía para trabalhar. “Constantemente, cerca a moça no caminho, fazendo propostas desonestas, tendo a ‘queixosa’ se esquivado a todos eles”, constava na Ocorrência nº 324, de 22 de novembro de 1957. Pelo registro, ela buscou ajuda para evitar “piores consequências” e que fosse cessado o “tal abuso” por parte de Lionel.

O homem também foi “severamente repreendido”. De acordo com o relato, caso ele continuasse a “molestar” a vítima – do que hoje seria chamado de importunação sexual – seriam tomadas medidas mais enérgicas.

Praticamente 10 dias depois dos dois últimos casos, a história de importunação sexual se repetiu. Em 9 de dezembro de 1957, Manoel Pedro dos Santos denunciou dois homens bêbados que “tentaram seduzir sua esposa, sem ao menos respeitar sua presença”. Um dos denunciados, Sebastião Alves da Silva, foi posto em liberdade no dia seguinte com a condição de não mais repetir, conforme foi registrado na Ocorrência nº 359.

Violência doméstica

As mulheres também eram vítimas de agressões dos maridos. Em 15 de dezembro de 1957, Idalina Alves da Silva pediu socorro à divisão de Segurança da Novacap. De acordo com a Ocorrência nº 374, a vítima denunciou a violência que sofria do marido, Francisco Alves, com quem estava casada há quatro anos. “Ultimamente vem sendo muito maltratada por razões de ciúmes infundados, porque claramente sempre o respeitou.”

Confira as ocorrências, que eram escritas à mão: 

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Idalina prestou queixa alegando que só desejava “viver em paz”, que trabalhava para sustentar os dois filhos. “[Ela] pede à autoridade para que seu companheiro assuma o compromisso de não mais espancá-la.” No relato, ela destacou que não queria mais viver com ele e pediu que a deixasse em paz.

Como solução, o boletim apresentava que o coronel-chefe da divisão repreendeu Francisco para não bater na esposa.

Em 2 de janeiro de 1958, Ivo Nascimento foi preso em flagrante às 18h30 por tentar esfaquear sua esposa “porque esta não queria mais viver em companhia do mesmo”, registrava a Ocorrência nº 414. Pelo documento, o homem foi escoltado e entregue ao delegado de Planaltina (Goiás) para responder pelo crime.

As repreensões nem sempre adiantavam. Pela Ocorrência nº 463, de 25 de janeiro de 1958, Pedro José Rebelo foi deportado para Goiânia por mais de uma vez espancar sua esposa “causando-lhe sérios ferimentos”. O documento conclui que o homem não poderia pertencer mais a Brasília e, por isso, deveria ser despachado para a capital de Goiás.

Perto do Natal, em 20 de dezembro de 1957, Rita Diniz denunciou os dias de violência que vinha sofrendo pelo marido, José Dias. “Hoje, após uma dessas bebedeiras, chegou ao ponto de tentar espancá-la, ferindo-a com uma tesoura.”

Ele foi preso “por achar-se alcoolizado”, severamente repreendido e posto em liberdade no dia seguinte, avisado de que não poderia continuar.

Pouca coisa mudou…

Os registros do passado impressionam pelos detalhes e números, mas não são tão diferentes dos dados atuais registrados no Distrito Federal. De acordo com o levantamento da Segurança Pública do DF, em 2021, 16.949 mulheres foram vítimas de violência doméstica, número que inclusive aumentou 0,9% em comparação ao mesmo período de 2021.

Em relação às violências sexuais, mais uma vez o DF apresentou aumento de 9,5% na comparação de 2022 com o ano anterior. De janeiro a dezembro do ano passado, 763 mulheres foram vítimas de crimes contra a dignidade sexual, sendo estupro, estupro coletivo, estupro de vulnerável e importunação sexual.

Pelo painel do feminicídio, 159 mulheres foram assassinadas pelos companheiros no Distrito Federal, de 2015 a 2023. Os dados mostram que as violências ocorridas naquele cenário precário e quase garimpo do início da capital seriam apenas as primeiras de mais de seis décadas de crimes.

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