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Garimpo do Planalto: registros mostram estupros, homicídios e pedofilia na construção de Brasília

Estupro, tiros, esfaqueamento, pedofilia, ameaças e outros crimes faziam da construção de Brasília um cenário próximo a um garimpo

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Mario Fontenelle/Arquivo Público do DF
Mario Fontenelle Construção de Brasília
1 de 1 Mario Fontenelle Construção de Brasília - Foto: Mario Fontenelle/Arquivo Público do DF

A partir de 1956, maquinários começaram a se instalar em uma área de Cerrado nativo. Naquele Planalto Central, seria a construção de uma nova capital. As derrubadas das árvores mudaram a vegetação verde com as escavações de uma terra avermelhada. A paisagem, em quatro anos, foi radicalmente modificada dando origem a avenidas, blocos, praças e palácios.

A poeira seca colava no corpo dos homens que chegavam para construir a cidade, deixando a pele rubra como urucum. Essas pessoas passaram a viver em vilas operárias, trabalhando de sol a sol para que, em 21 de abril de 1960, fosse possível inaugurar Brasília. Trabalho incessante e estressante, aliado a álcool, armas e disputas de egos, resultou em violências brutais quase que diariamente.

“A construção de Brasília, com as devidas proporções, parecia um cenário de garimpo“, comparou o coordenador de projeto do repositório digital do Arquivo Público, o historiador Wilson Vieira Junior. Ocorrências de estupro, tiros, esfaqueamento, pedofilia, ameaças, entre outras, eram registradas quase que diariamente pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) – empresa criada para administrar tudo durante a construção, inclusive a Segurança Pública.

Os documentos estão disponíveis no Arquivo Público do Distrito Federal, em quatro caixas, com os relatos a partir de 11 de dezembro de 1957. São 2.528 páginas com descrições diversas de pessoas detidas naquele período, como presos por embriaguez, porte de armas, agressões, violências, etc.

Veja algumas ocorrências:

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Naquele pedaço de Brasil, as punições podiam ser diferentes para cada caso: estar bêbado na rua resultava em passar a noite na cadeia; andar armado era passível de repreensão pelo coronel da antiga divisão da Segurança Pública; autores de delitos mais mais graves acabavam “deportados” de Brasília.

Conheça histórias de alguns crimes que aconteceram enquanto a capital era erguida no meio do Brasil.

Às 20h30, de 10 de junho de 1957, José dos Santos foi preso “por se encontrar em alto estado de embriaguez, em prática de desordem no Núcleo Bandeirante depois de sacar uma arma para agredir um senhor ali residente”, conforme consta na Ocorrência nº 932. No relato, o homem conseguiu fugir, mas foi detido novamente e levado à divisão. “Negou sua verdadeira identidade e recolhimento ao xadrez”, consta no documento.
Preso por estar embriagado, os responsáveis pela ocorrência, em sequência ao relato, identificaram o indivíduo como um homem que estuprou uma das lavadeiras no córrego. “[Com] força e agindo com violência contra a sexualidade.” Como “solução”, o homem foi “deportado” de Brasília.
Nem as crianças escapavam. Em 26 de outubro de 1958, um relato de apenas seis linhas indicava a tentativa de estupro de uma menina de 6 anos na região onde hoje é Taguatinga. Com a alcunha de “tarado Francisco”, o texto informava que ele abordou a menor para “saciar seus bestiais desejos”.  As informações ficaram registradas na Ocorrência nº 1.250. Confira abaixo:

“Iam matar um”

Em 20 de novembro de 1957, um homem identificado como Douglas Antunes denunciou sofrer ameaças dos colegas das obras. Ele tinha como responsabilidade fiscalizar o andamento das construções de uma quadra no Plano Piloto. Segundo o relato, o fiscal teria sido coagido pelo empreiteiro Fonseca “a praticar diversas irregularidades no apontamento de horas de trabalho”.
Após a proposta, Douglas delatou Fonseca aos superiores. “Em virtude dessa atitude, está sendo ameaçado por parte de operários daquela obra, tendo até sua residência sendo vigiada pelos mesmos durante a noite, os quais na tocaia ameaçavam o eliminar.” O homem informou, ainda, ter recebido um bilhete em tom ameaçador e pediu providências para que ele e a família ficassem protegidos.
Os alojamentos também eram zonas de conflito. Em 26 de dezembro de 1956, foi registrada ocorrência de que, no Alojamento nº 5 da Novacap, os operários Sabino Telles e João fiscal seriam pessoas “desordeiras”, já tendo cortado outras pessoas e que estavam prometendo cortar um homem identificado como Francisco Moura, seu colega de dormitório. A suposta vítima alegou, à época, que era obrigada a “fazer serviços como se fosse seu serviçal”.
Os suspeitos também teriam dito a uma terceira pessoa que ‘iam matar um”, em referência a Francisco. Pelo documento, o responsável pelo plantão alegou ter ido ao local verificar a situação e relatou que “os mesmos indivíduos ‘fizeram peito’ me encarando com arma branca na mão, fugindo depois a seguir”.

Registro de óbitos

Em outro arquivo, há 205 páginas de registros dos óbitos que ocorreram na capital. Nem todas estão completas com a causa, data de nascimento ou mesmo o nome. Também havia imprecisão de informações. Em 2 de agosto de 1957, por exemplo, Airton de Paiva, 27 anos, foi assassinado com golpes de faca no restaurante Maracangalha, no Núcleo Bandeirante.
Apesar da morte confirmada, não havia registro no livro de ocorrências com essa informação do óbito. Em outra ocasião, Pedro Zupelli, 30 anos, morreu em 6 de novembro de 1957, em via pública, por “‘perfuração profunda no cérebro (tiro)”. Mesmo se tratando de um crime mais grave, contra a vida, o homicídio de Zupelli não apareceu em nenhum documento oficial da Novacap disponibilizado no Arquivo Público.
Os corpos, em geral, eram sepultados especialmente em Luziânia, Planaltina Formosa, no Entorno do DF, mas havia casos em que vítimas eram enviadas para outras cidades, como a capital Goiânia e Itumbiara, no interior de Goiás.
Aos 18 anos, Raimundo Moura morreu após um acidente na rodovia que liga Anápolis a Brasília, com um esmagamento da cabeça. O acidente ocorreu em 16 de março de 1958. Naquele mesmo dia, Luiz Gonzaga Borges, 33 anos, teria se suicidado em via pública, ao tomar veneno.
Veja esses registros: 
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Insalubridade

Também chama a atenção nos registros a quantidade de crianças e recém-nascidos mortos. Dos nove primeiros nomes na lista, a partir de 20 de abril de 1957, quatro são crianças com, no máximo, 3 anos e 6 meses. A principal causa de óbitos infantis era por questões respiratórias, como bronco pulmonar e pneumonia aguda.
Os abortos também eram frequentes. A cada duas páginas, pelo menos, havia um registro de aborto, sendo espontâneo ou não. Em 30 de outubro de 1957, há o registro de que um feto foi encontrado em uma vala no Riacho Fundo, por volta das 15h. O sepultamento ocorreu em Luziânia.
Diarreias, infecções intestinais e paradas cardíacas eram causas comuns encontradas nos registros. “Além de haver muita insalubridade nos locais de forma geral, não se tinha muitos especialistas, então, há até um possível excesso de mortes causadas por problemas cardiovasculares”, concluiu o pesquisador do Arquivo Público do DF Wilson Vieira.

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