Filha de quilombola morta em pau-de-arara: “Escravidão ainda existe”
Ao Metrópoles Entrevista, Lucineide denunciou a exclusão em que o povo do maior quilombo do Brasil vive, na região da Chapada dos Veadeiros
atualizado
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“A escravidão ainda existe”. É assim que a quilombola Lucineide Carvalho avalia o modo em que a comunidade Kalunga é tratada na região da Chapada dos Veadeiros, destino turístico no Entorno do Distrito Federal. Lucineide é filha de Domingas Fernando de Castro, que morreu aos 52 anos após cair de um caminhão pau-de-arara oferecido pela Prefeitura de Cavalcante como forma de se locomover no município goiano.
Ao Metrópoles Entrevista Lucineide denunciou a exclusão em que o povo do maior quilombo do Brasil vive. “Essa é uma prática ilegal, de transportar as pessoas como animal, como um boi. Eles são maltratados há muitos anos”, completou a quilombola.
Assista:
“Por que no turismo lá, eles anda com transporte legal – com assento, segurança – e não os quilombolas?”, questiona Lucineide. “As pessoas ficam naquele lombo [carroceria do caminhão] no sol ou na chuva… Os quilombolas ficam à mercê de não ter um transporte digno”, indigna-se.
Com a morte de Domingas, o Ministério Público de Goiás pediu o fim do pau-de-arara como meio de transporte para as pessoas e ainda requisitou transporte seguro para a população. Para Lucineide, se o modelo que já tivesse sido implantado, a mãe estaria viva.
“Eu estou fazendo isso porque quero um desfecho. Não quero que a morte da minha mãe seja em vão”.
Além da precariedade no transporte, o socorro demorou três horas para acessar o local e transportar Domingas, tudo isso sem a estrutura necessária.
“Os bombeiros foram sem ter uma maca, totalmente despreparados no jeito que pegaram”. A quilombola foi levada em um carro 4 x 4 até o hospital mais próximo. “Ela estava toda quebrada, não tinha como transportar daquele jeito”, revoltou-se novamente Lucineide.
De acordo com o boletim de ocorrência da morte de Domingas, o carro de tração foi usado como socorro “devido à região ser de serra e de difícil acesso” para fazer o atendimento.
O laudo cadavérico ainda apontou que Domingas perdeu tanto sangue na queda que veio a óbito por uma anemia aguda pós-hemorrágica, causada pela grave lesão que sofreu.
“Culpa da vítima”
Apesar de ressaltar essas condições em inquérito, o delegado Haroldo Padovani Toffoli concluiu a investigação em 23 de fevereiro, apontando que a vítima é a culpada pela própria morte, que ocorreu em novembro do ano passado.
Domingas usava o veículo oferecido pela Prefeitura de Cavalcante como forma de se locomover no município goiano, quando se assustou com a fumaça que saía do transporte irregular e com gritos que avisaram “fogo”. A mulher acabou pulando da carroceria e se feriu gravemente.
“O resultado ocorreu por culpa exclusiva da vítima, de modo que a conclusão do presente caderno investigativo sem autoria definida é medida que se impõe”, define o delegado. Harold Padovani Toffoli conclui que a kalunga morreu porque pulou do veículo.
Quilombolas
Descendente de pessoas escravizadas que fugiram e montaram o quilombo Kalunga, no qual vivia, Domingas estava a caminho do centro de Cavalcante para sacar o dinheiro da aposentadoria e fazer compras. Atualmente, essa é a única forma de transporte coletivo que existe no local.
O acidente também revela um lado aterrador do município, conhecido pelas paisagens paradisíacas. De difícil acesso para os turistas na região, o trajeto também faz parte da rotina de moradores que vivem nas comunidades.
Com apenas 9.583 habitantes, mais de 90% da receita do município é de fora, sendo movimentado pelo turismo da região. Os dados estão no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“É comum que no final ou no início de cada mês passe um pau-de-arara buscando as pessoas nas comunidades para que sejam levadas a cidade e sacar dinheiro de auxílios governamentais”, contou uma pessoa que não quis se identificar. “Aquilo é uma tragédia anunciada, mas muitas vezes se faz vista grossa porque é a única forma de acesso dos moradores”.
Kalunga
Kalunga era uma palavra ligada às suas crenças religiosas dos povos vindo do Congo e de Angola. No português brasileiro, calunga adotou outros sentidos, como “coisa pequena e insignificante”, conforme no documento elaborado pelo governo federal “Uma história do povo Kalunga”, publicado em 2001. O documento pode ser acessado neste link.
O termo também está presente na música popular brasileira e aparece na canção Yáyá Massemba, gravada pela cantora Maria Bethânia, com a frase: “Que noite mais funda calunga/ No porão de um navio negreiro/ Que viagem mais longa candonga”.
Prefeitura
Em uma entrevista recente divulgada nas redes sociais do prefeito de Cavalcante, Vilmar Souza Costa, destacou que o município tem apenas 11 quilômetros de pavimentação. Veja a declaração neste link.
Também conhecido como Vilmar Kalunga, ele é o primeiro quilombola a ser prefeito na região com o maior quilombo do país.
O Metrópoles tem questionado o prefeito de Cavalcante, Vilmar Souza Costa, desde terça-feira (26/2), sobre as condições de transporte, mas até a última atualização deste texto, nenhuma resposta havia sido emitida.