Falta de campanha contra câncer de mama para pessoas trans limita prevenção
Assunto pouco abordado pelas políticas públicas voltadas à população LGBTQI+ pode ser uma barreira na prevenção desse público
atualizado
Compartilhar notícia
O câncer de mama ganha protagonismo nos debates deste mês, devido ao Outubro Rosa. Apesar de o foco das campanhas de prevenção ser as mulheres cisgênero – aquelas que se identificam com o sexo biológico – transexuais e travestis também são atingidas pela doença. Apesar disso, não há representatividade do grupo nas ações de conscientização deixando espaço para a transfobia e a exclusão social, que dificultam a prevenção da doença nesse público.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), as populações transgênero e não-binária – que não se identificam exclusivamente com o gênero feminino ou masculino – não se sentem representadas no acolhimento, rastreamento e, especialmente, na coordenação do cuidado de saúde – que vai além do câncer de mama.
Para a assistente social Lucci Del Santos Laporta, 29 anos, a invisibilidade dos corpos trans nas ações de prevenção e combate à doença reflete no monitoramento de como o câncer pode alcançar essas pessoas.
“É uma população que não procura atendimento, a não ser que esteja em estado grave, pois teme sofrer preconceito. Então, dificilmente irá em busca de tratamento preventivo. A exclusão das mulheres trans e travestis nas campanhas reitera a falta de políticas públicas voltadas para esse público. Além de ser deseducativo, está negando direito ao acesso à saúde”, diz Lucci.
Desde 2016, Lucci faz terapia com estrogênios e antiandrógenos, hormônios responsáveis pelo desenvolvimento de características femininas no corpo. Ela é uma das pacientes atendidas no Ambulatório de Assistência Especializada às Pessoas Travestis e Transexuais do Distrito Federal.
“O meu médico sempre teve essa preocupação, em me orientar sobre os cuidados e exames de toque e mamografia. Mas quando a gente conhece a realidade de outras pessoas trans, você vê que é uma população com vida precária, mal informada sobre os riscos de desenvolver um câncer de mama e outras doenças”, relata a assistente social.
Segundo a assistente social, a transfobia também estende-se para a realização da mamografia. “Em alguns casos, se a pessoa não tiver a retificação de nome e gênero, eles questionam a real necessidade de realizar o exame, já que na identidade consta como uma pessoa do sexo masculino, mesmo pelo plano de saúde”, explica.
Orientações de exames
Mesmo com pouca divulgação e esclarecimento sobre o assunto, as pessoas trans podem ser acometidas pelo câncer de mama. Independentemente do gênero, há risco para o desenvolvimento da doença, ainda que nas campanhas o alerta seja voltado apenas para mulheres cis.
Para a oncologista clínica do Centro de Oncologia e Hematologia do Hospital Santa Lúcia, Alessandra Leite, as ações de prevenção do Outubro Rosa não são pensadas para esse público. “Vemos que essa população às vezes sequer é acompanhada como deveria. Não conseguem avaliações adequadas ou atendimento apropriado”, comenta.
A especialista explica que, no caso de homens transexuais, mesmo aqueles que fizeram a retirada das mamas, existe o risco de desenvolver o câncer, embora seja reduzido. Isso porque, mesmo após a mastectomia, ainda permanece tecido mamário na região, o que pode originar o tumor.
“Em pessoas mastectomizadas, há pouco tecido mamário, por isso pode ser necessário a realização de uma ultrassonografia e exames clínicos. Além disso, o uso de testosterona pode ser um risco a mais, por aumentar o risco de câncer, não só o de mama”, esclarece Alessandra.
Já para homens trans que não realizaram a cirurgia de retirada das mamas, a oncologista recomenda realizar a mamografia anual, a partir dos 40 anos.
No caso das mulheres trans e travestis que fazem uso de hormônio, a orientação é fazer mamografia anual, após 15 anos do início do hormônio ou acima de 50 anos. “O uso de estrogênio acaba expondo ao risco de hipertrofia da glândula mamária, além de afetar outros tecidos do corpo. Para aquelas que possuem prótese, a silicone pode dificultar o diagnóstico caso o tumor esteja por trás e apenas uma ressonância detectará”, explica.
Por fim, as mulheres trans e travestis que não fazem uso de hormônio não têm indicação de exames de imagem, exceto nos casos em que há alguma alteração nas mamas em exame clínico ou em autoexame.
Desafios
Membro da Associação do Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Distrito Federal e Entorno (AnavTrans), a publicitária Ludymilla Santiago, 39, ressalta que não é difícil encontrar relatos de pessoas trans que não têm acesso ao atendimento médico adequado.
“Não existe um interesse governamental de trabalhar com esse público e não é uma questão pontual do câncer de mama, é da vivência. Não temos uma política pública em constante processo de construção para que essas pessoas tenham o direito atendido, mediante questões de saúde” pondera Ludymilla.
Segundo a ativista, ainda que a pasta da Saúde seja a mais abrangente e inclusiva, a população trans não é assistida. “O ambulatório trans é uma política que surge através da pressão social, mas não dá conta de várias questões. Corremos riscos de situações graves de saúde por falta de políticas públicas voltadas para nós”, defende.
Prestes a completar 40 anos, Ludymilla, que é uma mulher trans, relata que nunca realizou uma mamografia, mas não por falta de interesse. “Das vezes que cheguei mais próxima de fazer o exame, fui questionada por médicos sobre a real necessidade. Quando chega o Outubro Rosa, você não se vê representada. Tem milhares de pessoas trans que acham que por não tem essa fala e uma comunicação direcionada, não existe o risco”, alerta.
Outubro Rosa mais inclusivo
Para o infectologista Leandro Machado, médico especialista em saúde LGBTQIA+, a campanha levar o nome “Outubro Rosa” já cria um imaginário de que apenas mulher cis tem de se preocupar com o câncer de mama.
“A gente se esquece do homem trans, por exemplo, que também tem risco de desenvolver a doença. Não existe campanhas para um público naturalmente marginalizado ou espaço pensados para atendê-los de maneira inclusiva”, pondera Leandro.
Além de campanhas que promovam a inclusão social, o especialista defende a necessidade de treinamento do corpo clínico para atender essa população. “É uma política que tem que ser transversal na nossa formação. Na sequência, a gente vai ter o Novembro Azul e não estaremos pensando novamente nas mulheres trans não operadas, que podem desenvolver o câncer de próstata”, menciona.
Ações da Secretaria de Saúde
De acordo com a Secretaria de Saúde do DF, sete hospitais públicos da capital federal oferecem exames e prevenção contra o câncer de mama. A porta de entrada para o atendimento são as unidades básicas de saúde (UBSs), onde o paciente é avaliado.
Nos hospitais regionais do DF, são realizadas mamografias. E, caso necessário, também são oferecidos na rede pública outros exames mais específicos como a ultrassonografia mamária e a biópsia.
A campanha Outubro Rosa também aborda a prevenção ao câncer de colo de útero. Na rede de Saúde, a Atenção Primária é a principal responsável pela coleta do exame citopatológico. Até agosto de 2022 foram coletados 34.623 exames.
A reportagem do Metrópoles entrou em contato com a pasta para saber quais campanhas do Outubro Rosa são voltadas para as pessoas trans e travestis, contudo a secretaria informou apenas quais eram as ações voltadas para o público de mulheres cisgênero, como o mutirão da reconstrução mamária e exames ofertados no Centro Especializado em Saúde da Mulher (Cesmu).
“As UBS também estão realizando diversas ações locais, como palestras sobre orientação sexual e planejamento familiar (com foco em saúde da mulher), coleta de exame citopatológico e solicitação de mamografia no público-alvo, além da disponibilização de testes rápidos para mulheres e parceiros que estiverem presentes nos eventos, rodas de conversa sobre a importância dos exames de rastreamento”, disse a pasta, em nota.