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A República do Brasil era recém-nascida quando o Decreto Nº 695 foi assinado em 28 de agosto de 1890. Naquele momento, o “generalíssimo” Manoel Deodoro da Fonseca ainda não ostentava a patente de marechal, mas criava o montepio. O pagamento, utilizado de forma incipiente anteriormente nos quartéis, se tornava oficial e funcionaria como um “sistema de previdência” voluntário para que as famílias de militares continuassem a receber pagamentos em caso de falecimento.
O decreto tinha um português diferente, usando “officiaes” e “pharmaceuticos”. O nome do país, inclusive, era outro: “Republica dos Estados Unidos do Brazil”. Mudaram-se os termos, mas os benefícios dos militares seguiram. O montepio deu lugar às polêmicas pensões, alvo de contestações por parte da sociedade, e que deram um prejuízo estimado em R$ 54 milhões ao Exército Brasileiro e Marinha do Brasil nos últimos anos. O rombo pode ser muito maior, uma vez que a Força Aérea Brasileira (FAB) se recusou a fornecer os dados.
Quando leva-se em consideração as maiores patentes que ainda existem nas Forças Armadas, são 35 militares da ativa, 360 na reserva ou reformados e outras 3.276 pessoas recebem pensões pelos cargos. Os dados apresentam as informações de generais de Exército, almirantes e tenentes-brigadeiros do Ar. É importante salientar pode existir mais de um pensionista por pensão, que é dividida pelo números de beneficiários.
Antigamente, as pensões militares podiam ser transferidas até para netos, mas houve mudanças progressivas na legislação com o passar dos anos. Mário Porto, promotor militar, aponta que a Medida Provisória 2.215, de 2000, gerou uma reestruturação da remuneração dos militares. Para os membros das Forças Armadas que entram agora, a pensão é destinada à esposa e filhos menores ou incapazes. Há uma opção para as filhas solteiras receberem também, mas o militar deve pagar uma taxa adicional.
O promotor aponta que as pensões militares não são, necessariamente, um “privilégio” até porque militares e servidores públicos contribuem para a previdência, sendo que eles pagam pelos eventuais benefícios. Além disso, muitas famílias dependem da pensão como única fonte de renda, o que pode levar a uma complexa situação de vulnerabilidade social quando o pensionista falece.
Também há situações específicas em que a família do militar se muda para diferentes regiões do país, incluindo locais remotos e difíceis, o que pode impedir que a esposa desenvolva uma carreira própria.
“É um benefício que a pessoa pagou para ter, mas, assim, realmente existe um peso muito grande, porque eu acredito que a base da previdência está diminuindo e o topo está se alargando. Então, você está tendo uma desproporção entre quem paga e quem recebe. Mas todo mundo pagou, todo mundo está pagando”, menciona o promotor.
O tamanho ainda misterioso das fraudes em pensões
O Metrópoles investigou nos últimos meses o universo das fraudes em pensões militares. Foram diversos pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI) e análise de documentos oficiais para reunir dados e informações que são quase sempre de difícil acesso. Por isso, os materiais encontrados representam apenas pequenos pedaços de um quebra-cabeça muito maior que gera transtornos enormes para as Forças Armadas e perdas milionárias para os cofres públicos. Os valores dos prejuízos somados do Exército e da Marinha ultrapassam R$ 54 milhões nos últimos anos.
Entre os achados, houve a descoberta de que o Serviço de Veteranos e Pensionistas da Marinha (SVPM) promoveu ações para a cobrança de 187 supostos recebimentos indevidos ou fraudulentos desde 2014. Os pagamentos envolvem mais de R$ 27,4 milhões. Isso sem considerar as alterações por conta da inflação.
A Marinha, no entanto, faz a ressalva de que apenas com a consulta individual e pormenorizada dos processos judiciais seria possível determinar a exatidão da quantidade de casos e os valores devidos, já que esses podem ter sido recalculados no âmbito das ações. O comando da força, especificamente, realiza diversos cancelamentos de benefícios que podem ser provenientes de decisão judicial, por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), ou por auditoria interna.
Destaca-se que a confirmação de que uma pensão foi recebida de forma fraudulenta ocorre, na maioria das vezes, muito tempo depois da emissão. Isso porque, quando a Marinha realiza a suspensão do benefício por suposta fraude, é encaminhado o processo correspondente ao Ministério Público Militar (MPM), que avalia e decide quanto à existência de elementos que caracterizam a fraude. Além disso, em alguns casos, o beneficiário é inocentado, o que conclui que não houve fraude e apenas desconhecimento ou outro entendimento dado pelo juiz.
Em relação ao Exército Brasiliero, foi possível catalogar 65 ocorrências de pensões militares que foram canceladas em processos administrativos entre 2019 e 2024. Foram 39 sindicâncias e 26 inquéritos que investigaram fraudes, saques indevidos e pagamentos com indícios de má-fé. Nesses casos, o prejuízo foi de R$ 21.428.437,23. Existem ainda outras ações na Justiça Militar havendo condenações por crimes de estelionato que geraram um rombo de outros R$ 5,2 milhões.
Além disso, dados obtidos exclusivamente para esta reportagem mostram que o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu cancelar 448 pensões militares desde 2014. Os números mostram que 165 foram julgadas ilegais e outras 15 anuladas por decisão judicial. Os resultados sobre irregularidades podem ser ainda maiores, pois outros 161 casos foram classificados apenas como “outros”.
Crime comum na Justiça Militar
De acordo com o promotor Mário Porto, a fraude em pensão é um dos crimes mais comuns na Justiça Militar. “O fato mais comum é quando o pensionista morre, normalmente o filho, o cuidador, o neto, continua sacando os valores até que a força descubra o óbito e interrompa o pagamento”, aponta o representante do Ministério Público Militar (MPM). No entanto, por conta da grande quantidade de pagamentos, o sistema pode demorar um ano na atualização de seus dados, o que contribui para a dificuldade na detecção rápida dessas situações.
Após as primeiras informações sobre o possível saque irregular, as Forças Armadas realizam sindicância interna para confirmar o falecimento do pensionista. Após a certificação do óbito, a família é contatada. O promotor comenta que, normalmente, se a pessoa confirma o recebimento, o caso é encaminhado à Advocacia Geral da União (AGU) para recuperação dos valores. Caso a quantia não seja devolvida, um inquérito policial militar pode ser instaurado e o processo é encaminhado ao Ministério Público Militar. O órgão investiga as ações, verificando se há um ato de má-fé, e pode processar os envolvidos pelo crime de estelionato, na modalidade previdenciária.
Segundo Porto, as fraudes incluem falsificação de documentos, a apresentação de pessoas com fisionomia parecida no lugar do pensionista para a prova de vida anual, e o uso do dinheiro da pensão para pagar despesas pessoais ou de empresas. Há ainda casos de simulação de união estável para obter pensões indevidamente. Atualmente, um dos maiores desafios é a demora na comunicação e verificação dos óbitos.
“Talvez a solução estaria nos cartórios. Se a gente pudesse mexer na lei civil, para que constasse na certidão de óbito que a pessoa era pensionista, de qualquer Força Armada ou de um órgão público civil, o próprio cartório ali se encarregaria de encaminhar essa informação para a força. O sistema do Sisobi (Sistema de Controle de Óbitos) ainda tem uma demora entre a comunicação e a verificação. Acho que a gente deveria diminuir esse tempo, deveria ser mais rápida a alimentação e a difusão dessa informação”, afirma o promotor militar.
Mário Porto ressalta que, apesar dos valores totais das fraudes conhecidas serem altos, o percentual em relação ao número total de pensionistas é considerado relativamente baixo. “A impressão que eu tenho é que o valor é alto, mas o percentual, não. Existe um esforço de controle, mas por mais controle que o Estado tenha, sempre tem uma mente maquiavélica para burlar. É impressionante. Se a gente botar assinatura digital, dado o biométrico, alguém vai achar um jeito de burlar”, comenta.
“Sósia” da mamãe pensionista
As pensões militares também se aplicam aos servidores civis das Forças Armadas. As fraudes também. Em 1995, uma viúva de um ex-profissional do Exército na 26ª Circunscrição de Serviço Militar, sediada em Teresina (PI), morreu. Assim, o pagamento do respectivo benefício deveria ser finalizado.
No entanto, a filha, em vez de comunicar o falecimento da mãe ao Exército, decidiu usar uma outra senhora como “sósia” da sua mãe para que os valores fossem depositados na conta bancária da família. Para isso, usava um documento de identidade contendo a foto da falsa mãe, mas os dados pessoais da falecida, para que a outra idosa pudesse se passar pela pensionista nas oportunidades em que era necessário se apresentar perante a 26ª CSM.
De acordo com o Ministério Público Militar, a denunciada manteve a fraude por mais de 17 anos. A farsa só foi descoberta em maio de 2013. Na época, a idosa que se passava pela mãe dela também morreu e ela teria tentado utilizar uma outra pessoa para manter a situação, o que gerou desconfiança. Os prejuízos aos cofres públicos foram da ordem de R$ 230 mil, conforme laudo contábil. O crédito dos benefícios era depositado diretamente na conta corrente de titularidade da filha.
Inicialmente, ao ser julgada pela Auditoria de Fortaleza, a acusada foi condenada a dois anos e quatro meses de reclusão, pelo crime de estelionato, conforme o artigo 251 do Código Penal Militar (CPM). A sentença de primeira instância foi expedida em julho de 2016.
Inconformada com a decisão, a defesa recorreu ao Superior Tribunal Militar (STM) no ano seguinte e pediu a absolvição com base nas alegações de que havia ausência de dolo e inexistência de prejuízo para a administração pública. Na visão dos advogados, a alínea “a” do inciso II do artigo 5º da Lei nº 3.373/58, que dispõe sobre o Plano de Assistência ao Funcionário e sua Família, garantiria à acusada, que ostentava a condição de filha solteira, a reversão da pensão por ocasião do falecimento da beneficiária.
Ao analisar o caso, o ministro Cleonilson Nicácio Silva relembrou que à época do falecimento a filha ocupava cargo público na rede estadual de ensino do Piauí, o que a impediria de receber o benefício. O relator também negou as alegações apresentadas pela defesa.
“Conclui-se, pois, que a acusada induziu a administração militar em erro para a obtenção de vantagem indevida, omitindo, deliberadamente, informação sobre o falecimento da sua genitora e ex-pensionista”, afirmou o ministro. O plenário do STM seguiu, por unanimidade, o voto do relator para manter íntegra a sentença de primeira instância, com o direito de apelar em liberdade e o regime prisional inicialmente aberto.
FAB não apresentou tamanho do rombo
Por mais de dois meses, o Metrópoles buscou junto à Força Aérea Brasileira informações sobre a quantidade de pensões que foram canceladas por fraudes e os valores relativos. Inicialmente, em 26 de setembro, o Comando da Aeronáutica apontou que seria necessário mais tempo para consolidação dos dados requeridos, cuja conclusão estava prevista para o dia 7 de outubro de 2024. No entanto, nenhum dado foi apresentado.
Meses depois, em um novo pedido de informações com o mesmíssimo teor, a FAB apresentou uma outra resposta. Dessa vez, informou que inexiste um banco de dados que possa compilar as informações requeridas, ou seja, não há no sistema informatizado campo específico que evidencie o motivo do cancelamento das pensões, os quais podem ser variados, tais como: atingimento da maioridade, falecimento da pensionista, renúncia, ou mesmo recebimento irregular.
Apesar disso, não é incomum a aeronáutica registrar casos célebres de falsificação nas pensões. Em um dos casos mais conhecidos, apresentado pela coluna Tácio Lohan, do Metrópoles, uma mulher se casou com o pai do companheiro dela. O sogro, um tenente da reserva remunerada da FAB, tinha 85 anos e foi diagnosticado com esquizofrenia.
Ela, inclusive, teve dois filhos e mantinha um relacionamento amoroso com o filho do ex-membro da FAB. Meses depois do matrimônio, em dezembro de 2015, o tenente faleceu. A “nora”, então, pediu para receber os valores como viúva do ex-combatente. O esquema só foi descoberto quase cinco anos depois após a denúncia de outra filha do militar. Até então, a mulher já havia recebido mais de R$ 360 mil.
O MPM apontou que a nora e o filho do combatente não tiveram nenhuma interrupção em seu relacionamento e seguiram no mesmo ambiente mesmo com o casamento falso com o tenente da FAB. “O casamento foi orquestrado no objetivo precípuo de ludibriar a administração militar e de obter vantagem indevida”, assinalou a ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.