Escritura da Fazenda Papuda é das mais antigas de que se tem registro
Antes da desapropriação para a construção da unidade prisional, região era área rural destinada à pecuária
atualizado
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Muito antes de se tornar o maior presídio da capital federal, o local onde hoje se encontra o Complexo Penitenciário da Papuda já foi uma pacata fazenda de criação de gado de leite, a qual se estendia por solo goiano ao longo de 7 mil alqueires. A área era maior do que a soma dos territórios de Taguatinga, Águas Claras e Recanto das Emas.
O papel amarelado, a letra cursiva caprichada e o português arcaico denunciam a idade da escritura da Fazenda Papuda, datada de 26 de junho de 1900 – é uma das mais antigas propriedades do DF de que se tem registro. O documento (veja abaixo) está arquivado no 1º Tabelionato de Notas, em Luziânia (GO), cidade mais antiga do Entorno Sul, que abriga grande parte de escrituras e contratos firmados antes da construção de Brasília.
Os limites originais do terreno estão em um livro de registros, de 1869, avaliado em 700 mil réis em inventário. O documento, do final do século 19, descreve uma divisão amigável entre José Campos Meireles e Josué da Costa Meireles, herdeiros da propriedade.
Escritura da Fazenda Papuda by Metropoles on Scribd
A origem do nome
O folclore local diz que o nome “Papuda” foi dado em referência a um casal de negros escravizados que vivia na região. A mulher teria sido acometida pelo bócio, uma deformidade na região do pescoço associada à deficiência da ingestão de iodo. O “papo” resultante da doença teria dado nome à área, onde também já existiu um quilombo.
Neto de Josué, Américo de Jesus Meireles, hoje com 88 anos, chegou a morar por quase 40 anos na velha fazenda e lembra com saudade do tempo em que vivia com a família na zona rural. A casa (foto em destaque) seguia a arquitetura da época dos bandeirantes, vista até hoje em imóveis preservados no interior de Goiás, com telhas de barro e paredes de pau-a-pique.
Américo tem na memória uma casa grande, com 13 quartos, onde a família vivia reunida. “Lá, a gente criava gado para tirar e vender o leite. A lavoura mesmo era só pra despensa [consumo próprio], a gente não vendia”, conta. Quando não conseguiu mais trabalhar na lida com as vacas, ele deixou a Fazenda Papuda e mudou-se de vez para uma rua histórica no centro de Luziânia.“Meu pai teve oito filhos com a minha mãe, mas ela morreu quando eu ainda era menino: tinha 7 anos. Depois disso, ele arrumou outra mulher, que ajudou a criar a gente enquanto éramos meninos. Com ela, teve mais 11 filhos”, lembra.
Documentos que contam histórias
A imensidão de terras que um dia foi a Fazenda Papuda acabou dando espaço a pequenas novas propriedades rurais. Depois das desapropriações na época da construção de Brasília, o local viu crescer o presídio mais famosos do Centro-Oeste e a cidade de São Sebastião.
Para o tabelião Irley Quintanilha, do 1º Tabelionato de Notas de Luziânia, onde muitos documentos de séculos passados estão registrados, os papéis antigos têm a capacidade de ajudar a contar a história de Brasília e de resolver conflitos.
“Quando a gente pensa em desapropriação, sempre vem a ideia de que é algo bem resolvido. Mas em Brasília, passados 58 anos, ainda existem questões que precisam ser esclarecidas, principalmente em disputas de terra, por exemplo, entre um particular e a União ou o Distrito Federal”, explica Quintanilha.
A falta de dados precisos de geolocalização faz com que algumas escrituras do século passado, e mesmo a partir de 1900, sejam difíceis de interpretar. “Quando se tem uma disputa de terras, é necessário encontrar referências geográficas para esclarecer as dúvidas. Às vezes, aparece que a propriedade compreende a cerca de arame que desce até o cupinzeiro, contornando uma grota. Isso não serve como referência. Quando é dito, por exemplo, que o limite fica na barra do córrego com o rio, aí, sim, é uma coordenada”, explica o tabelião.
Última visita
Outra história dos primórdios do presídio é contada pelo pesquisador luzianense Wilter Coelho. Anos atrás, ele entrevistou uma tia de Américo. Ana Meireles de Lima, herdeira do patriarca da Fazenda Papuda, era conhecida em Luziânia (GO) como Dona Nenê. Ela também passou boa parte da vida no local, mas, depois da desapropriação, retornou apenas uma vez.
Ao historiador Wilter Coelho, Dona Nenê narrou a última visita que fez à Papuda, dessa vez, não mais à fazenda, mas ao presídio. “Ela não teve filhos, mas adotou uma mulher e considerava o filho dela como se fosse neto. Nos anos 1980, esse rapaz teve alguns problemas com a Justiça e acabou sendo preso. Como fazia muito tempo desde a desapropriação, ela nunca mais tinha voltado por lá”, diz Coelho.
“Dona Nenê passou pela inspeção, visitou o neto na Papuda e, depois, saiu para percorrer a região e ver se encontrava alguma coisa, quando viu os escombros da fazenda. Ela se lembrou de quando era menina, que o quarto dela ficava no canto da casa e da janela dava para ver um pequeno curso d’água passando pelo quintal e duas mangueiras. No dia em que voltou lá, já com o presídio, ela viu as mesmas mangueiras e o mesmo filete d’água”, narra Coelho.
Nascida em 3 de maio de 1900, Dona Nenê tinha talento para vários ofícios, mas foi como parteira que se destacou, ajudando a trazer ao mundo 572 crianças. Ela morreu em 2004, aos 103 anos.
Wilter Coelho, autor de livros sobre a história de Luziânia, descobriu essa e outras histórias conversando com antigos moradores do município. “Eu tinha a intenção de fazer um acervo com a memória da cidade. Então, peguei um gravador cassete e saí atrás de pessoas ainda vivas que tivessem boas histórias”, conta.