Endereços invisíveis: onde cartas e encomendas nunca chegam no DF
Centenas de milhares de pessoas enfrentam transtornos por não receberem correspondências, documentos e faturas na própria casa
atualizado
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A entrega de correspondências na Estrutural é um enigma para o carteiro Wanderson Soares, 29 anos, um dos encarregados da tarefa na área. Se não tem ajuda dos moradores para resolver o jogo de adivinhação acerca dos endereços, parte da papelada que recheia a bolsa dele retorna a uma agência dos Correios. “Há quem nem sabe a identificação da própria casa”, conta.
O cenário piora por causa da violência. A 400m da área de atuação do carteiro, está a região onde não ele deve pisar, por questão de segurança: o Setor de Chácaras Santa Luzia, avaliado pelos Correios como potencialmente perigoso. A 24km dali, a segunda maior favela do Brasil, o Sol Nascente, em Ceilândia, também é território hostil para carteiros.
“Eu gasto de R$ 150 a R$ 180 por mês para buscar correspondências na casa de um amigo que mora em Ceilândia. Cadastrei o endereço dele, pois aqui não chegam”, contabiliza o comerciante Francisco das Chagas, 56 anos, morador do Sol Nascente há uma década.Juntas, essas e outras áreas no DF abrigam milhares de pessoas de baixa renda – 100 mil apenas no setor habitacional ceilandense, segundo dados da Administração Regional – que têm prejuízos por causa da defasagem na entrega de correspondências. Documentos, cobranças e encomendas não chegam a elas, mas se amontoam nas agências dos Correios, à espera dos destinatários.
A mulher de Francisco, Sydnairan Tomás, 42, relata que a filha Gabriela por pouco não começou o ano letivo de 2017 com atraso, por problemas na chegada da documentação referente à transferência escolar dela. “Eu me sinto uma pessoa sem endereço, sem lugar”, reclama. As correspondências endereçadas ao moradores do Sol Nascente vão para a agência dos Correios no centro de Ceilândia.
Dez ruas abaixo da casa de Francisco e Sydnairan, a dona de casa Priscila Ferreira (foto em destaque), 33 anos, lamenta as longas filas que enfrenta, semanalmente, na agência dos Correios no centro de Ceilândia. Apesar disso, recorreu a uma solução paliativa: cadastrar o endereço do marido, no Cruzeiro Velho, para receber os papéis.
Moro no Sol Nascente há sete anos. Desde então, só as contas da Caesb [Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal] e da CEB [Companhia Energética de Brasília] entraram na caixinha
Priscila Ferreira, dona de casa
Ação civil
O exemplo de Priscila e outras milhares de pessoas que recebem em domicílio apenas as contas de água e energia é um dos argumentos da Defensoria Pública da União (DPU) em ação civil contra a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). A peça, ajuizada em outubro do ano passado, cobra entrega de correspondências às residências do Sol Nascente.
Segundo a DPU, os Correios alegam falta de infraestrutura e segurança no local para a falta de prestação do serviço. Entretanto, o defensor regional de Direitos Humanos no DF, Alexandre Mendes, contesta o argumento. Isso porque outras empresas públicas, como as de energia e saneamento, atendem o setor regularmente.
“Não é razoável que a ECT deixe de prestar seu papel ao argumento de suposta falta de segurança e desorganização administrativa da localidade, ao passo em que o DF, por intermédio da CEB e da Caesb, consiga entregar as faturas de água e energia elétrica mensalmente aos cidadãos”, afirmou. Leia a íntegra da ação civil pública.
Monopólio estatal
Ainda segundo Mendes, a consulta a um serviço de GPS demonstra a “perfeita identificação das vias e endereço das residências no Sol Nascente”. Assinada por outros dois defensores públicos federais, a ação destaca que os Correios têm monopólio sobre a prestação do serviço postal, deixando os moradores dependentes da empresa.
Em dezembro, em audiência de conciliação, um juiz fixou prazo de 15 dias para os Correios apresentassem “relatório detalhado quanto à situação atual do cumprimento do serviço postal” no setor. A empresa pública cumpriu a determinação no último dia 24.
Na manifestação, os Correios afirmam que o responsável pela Gerência de Operações da Superintendência de Operações de Brasília solicitou mais informações à Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab) e fez “visita in loco para avaliar a existência mínima de condições para o recebimento do serviço de entrega externa”.
A empresa acrescenta que não se opõe à ação. “Mas a implementação do serviço postal naquela localidade deve observar algumas condições mínimas especificadas em lei, sem as quais a ECT fica impossibilitada de iniciar qualquer planejamento para entrega externa”, complementa.
Essas condições constam da Portaria nº 6206/2015, do Ministério das Comunicações. De acordo com o texto, a entrega de objetos dos serviços postais básicos ocorrerá desde que ofereçam acesso e segurança ao empregado.
Os defensores públicos avaliam a justificativa da empresa como “genérica”, pois sequer fixa prazo para início da entrega. “Pretendo conversar pessoalmente com o juiz para insistir que seja fixado judicialmente um prazo e multa aos Correios pelo seu descumprimento”, diz Mendes.
Falta CEP
Sobre a Estrutural, os Correios alegam que há registros de endereço insuficiente ou inexistente e Código de Endereçamento Postal (CEP) desatualizado. “A exemplo das quadras que possuem a mesma numeração em setores diferentes, como a Quadra 1, que existe nos setores Norte, Leste e Oeste”, diz.
A empresa acrescenta que, se o CEP informado não designar a área correta, isso impossibilita a localização do destinatário. E mais: os Correios dizem que estão trabalhando para viabilizar a entrega domiciliária no Sol Nascente.
Segundo a ECT, a primeira de três etapas do projeto de codificação da cidade já foi finalizada e corresponde às quadras 100 a 700. As regiões ainda não codificadas têm suas correspondências direcionadas à agência da Ceilândia (CNN 1, Bloco F).
Administrações regionais
A respeito dos endereços no local, a Codhab realiza ajustes nas residências, garantindo assim uma estrutura adequada para a região. A Administração Regional de Ceilândia afirmou que está “trabalhando constantemente com diversas ações junto ao Conselho de Segurança Local e com as Forças de Segurança Pública” para solucionar o problema.
Já a Administração Regional do Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (Scia), responsável pela Estrutural, informou que vai acionar os órgãos competentes para a resolução do problema em relação ao endereçamento na cidade. E acrescentou que o Setor de Chácara Santa Luzia é uma área de invasão e, por isso, não possui mapeamento.