Em quatro anos, 102 meninas estupradas fizeram aborto legal no DF
Em 2019, 45 crianças e adolescentes tiveram direito ao aborto legal, após serem violentadas. Entre elas, meninas de 12 e 13 anos
atualizado
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O corpo frágil, ainda em formação, acompanhado da voz infantil, denunciam a pouca idade. Estupradas, 102 crianças e adolescentes do Distrito Federal ficaram grávidas nos últimos quatro anos e tiveram o direito garantido pela Justiça de interromper a gestação. Os dados são da Secretaria de Saúde do DF, obtidos pelo Metrópoles.
Tão covarde quanto perverso, os casos de violência sexual cometidos na capital da república são assombrosos. Em um deles, uma menina de apenas 1 ano e 9 meses teve o ânus dilacerado pelo agressor.
Nos oito primeiros meses de 2020, o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) acolheu 10 adolescentes vítimas de violência sexual no DF. Foram realizados três abortos, dois deles em vítimas de estupro de vulnerável – quando a vítima tem menos de 14 anos. Em todo o ano passado, 45 crianças e adolescentes tiveram direito ao aborto legal, após serem violentadas. Entre elas, meninas de 12 e 13 anos.
Regiões como Ceilândia, Itapoã, Planaltina, São Sebastião e Águas Lindas – Entorno do DF – acumulam a maioria dos casos atendidos nos 17 postos onde funcionam unidades do Centro de Especialidades para a Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual, Familiar e Doméstica (Cepav). Em quase 70% dos casos, o agressor tem algum tipo de relacionamento interpessoal com a vítima. Em geral, a violência é cometida por pais, padrastos, tios, avôs ou primos.
Crime que choca
A história da menina de 11 anos que ficou grávida após ser violentada pelo próprio tio no Espírito Santo repercutiu nacionalmente e trouxe luz ao assunto, aquecendo o debate sobre o aborto envolvendo gestações frutos de violência sexual.
O DF é referência nacional no atendimento a vítimas de estupro. Há 10 anos na linha de frente do programa, a psicóloga Fernanda Jota conta que casos envolvendo crianças deixam marcas profundas em toda a equipe. A profissional lembra que atendeu ao caso de um bebê de apenas 1 ano e 9 meses, estuprado por um parente.
“É uma violência que rouba a infância. Que interrompe um ciclo de vida. Que transforma o curso do desenvolvimento daquela criança. Quanto menor a criança, mais mobilizada fico. Esse bebê tinha lesões muito graves no trato urogenital. E ainda tinha presença de vestígios biológicos da violência”, recorda.
A situação era tão grave, segundo a psicóloga, que era impossível levar a criança do hospital ao Instituto Médico Legal (IML). A necessidade de cirurgia era imensa.
“Nós acionamos a Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA) e eles acionaram o IML, que foi fazer a coleta de vestígios no hospital. Foi tudo muito rápido. Assim que o IML colheu, a criança foi encaminhada para a sala de cirurgia. Todo esse atendimento só foi possível porque temos uma rede de proteção muito forte. Serviços com profissionais muito comprometidos. Tanto no âmbito da saúde quanto na segurança pública”, disse.
Estupro de vulnerável
Investigadores da DPCA apuram centenas de casos todos os anos, envolvendo adolescentes que dão à luz no DF. O ponto de partida costuma ser a certidão de nascimento do recém-nascido. Segundo a delegada-chefe da unidade, Ana Cristina Santiago, cada caso é analisado individualmente. “Nosso principal objetivo é identificar se aquela adolescente tinha menos de 14 anos durante a relação sexual, o que caracteriza o estupro de vulnerável”, disse.
A rede de proteção também conta com a participação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). De acordo com a promotora Núcleo de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Mariana Távora, o DF não tem, ainda, uma vara específica para tratar casos envolvendo violência sexual contra crianças e adolescentes cometidas por pessoas próximas a elas. “Em outros estados essa vara já existe. No futuro, o ideal é que os casos mais delicados sejam direcionados para um juizado específico”, disse.
Onde pedir ajuda
Atualmente, as famílias do DF que precisam desse tipo de atendimento podem contar com assistência em todas regiões administrativas. Absolutamente todos os hospitais públicos do DF têm um Cepav. São programas chamados carinhosamente pelo nome de alguma flor. Por exemplo, existe o Margarida e o Jasmim, que ficam no Hospital Regional da Asa Norte, ou o flor de lótus, no Hospital Regional de Ceilândia.
Ao todo, são 17 programas, dos quais três de alta complexidade. O alecrim, que atende ofensores sexuais adultos egressos do sistema Justiça; o jasmim, que atende ofensores sexuais adolescentes e o PIGL, que atende mulheres e crianças que ficaram grávidas dos seus estupradores e que desejam interromper a gestação.
“Sendo assim, se uma vítima é atendida na Unidade Básica de Saúde de Planaltina ou na emergência do Hospital da Ceilândia, o profissional de saúde deve preencher a ficha de notificação de violência e encaminhar a vítima para o Cepav mais próximo de sua residência. Lá, ela terá acesso a atendimento psicológico, assistente social, psiquiatra ou ginecologista, dependendo da necessidade do caso. O trabalho existe há 24 anos e eu, orgulhosamente, participo há 10”, finaliza a psicóloga, Fernanda Jota.