Pessoas com deficiência são rejeitadas por escolas, apesar das leis que garantem acesso à educação
Recusar a matrícula de um aluno baseado em limitações físicas ou cognitivas é crime, que pode levar à cadeia. A rede privada acolhe somente 6% dos alunos com deficiência do DF
atualizado
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No meio do caminho tinha uma porta fechada. Tinha uma porta fechada no meio do caminho. Obstáculos são frequentes na estrada de pais que procuram colégios para seus filhos com deficiência. A lista de desculpas para não matricular um aluno com limitações físicas ou cognitivas é infinita: espaço estruturalmente inadequado, professores sem especialização e receio sobre a convivência com as outras crianças são algumas delas.
Recusar a matrícula de um aluno baseado em deficiência não é apenas insensível, é crime. Quem o comete pode ir para a cadeia. A Constituição e outras leis garantem acesso igualitário à educação para todos. A nova Lei Brasileira de Inclusão começou a valer há dois meses (em janeiro de 2016). Um dos pontos mais importantes é a proibição de cobrança de taxa extra por escolas particulares para aceitar alunos com deficiência.
O Metrópoles acompanhou as dificuldades de três famílias brasilienses na hora de encontrar uma escola para os filhos com deficiência. A lei também prevê punições como a detenção de dois a cinco anos para quem impedir ou dificultar o ingresso da pessoa com deficiência em planos privados de saúde e a quem negar emprego, recusar assistência médico-hospitalar ou outros direitos a alguém, em razão de sua condição. Mesmo assim, esse direito ainda está longe de ser uma realidade.
As mãos estudiosas de Lucas Victório (na foto acima), 17 anos, adorariam passar as páginas de um livro, mas não obedecem os comandos do cérebro. Os pequenos dedos da irmã dele, Mariane, 4 anos, trocam as folhas quando a leitura termina. Lucas é paraplégico, devido a uma má formação genética, nasceu com essa condição, que nunca o impediu de aprender. É preciso ver além da cadeira de rodas e do que Lucas não consegue fazer para conhecê-lo. São as conquistas que o definem, não as desabilidades.
O quarto de Lucas é cheio de medalhas e troféus conquistados em competições de física e matemática. Em uma das disputas, ele só não foi até a fim por não conseguir manusear um compasso. As barreiras surgem a todo instante, mas Lucas as supera com determinação.
A trajetória de Lucas, porém, não é feita somente de alegria. Antes de ser considerado aluno modelo, ele foi rejeitado por várias escolas. “Quando você chega com uma cadeira de rodas, eles só enxergam a cadeira. Até o olhar é diferente”, diz a mãe de Lucas, Cristiane Victório, que se formou em terapia ocupacional para atender melhor as necessidades do filho.
O ensino infantil e fundamental foram complicados. As escolas não correspondiam às expectativas e não conseguiam realizar a inclusão. Lucas foi alfabetizado com apoio de uma prancheta com letras, criada pela mãe. Somente no ensino médio, em uma escola privada, Lucas viveu plenamente o direito à educação. A escola fez reformas para recebê-lo e os colegas o auxiliavam com as tarefas.
Quando nasceu, médicos disseram que ele iria vegetar. A família não se conformou com o pessimismo e investiu toda sua atenção e recursos na saúde do garoto. “Nós o estimulávamos o tempo todo. Aos 4 anos, ele já falava a capital de 16 países. A primeira palavra que disse foi Paris. As pessoas se surpreendem muito com ele, desde sempre”, lembra a mãe.
Com tantos estímulos, recuperou parte da visão, que era baixíssima, e conquistou o movimento da mão direita, algo considerado impossível pelos especialistas que havia consultado. Concluiu o ensino médio com homenagens dos colegas e professores, pelo seu esforço em sala de aula. “Eu tirava foto do quadro, porque não podia copiar. As provas sempre foram orais”, relatou Lucas.
Descobri que ter amigos na escola faz toda a diferença. Eu achava que era triste porque não podia andar. Mas com o passar do tempo descobri que a felicidade não estava em caminhar, mas em ter pessoas ao meu redor que me acolhessem
Lucas Victório
No último dia 22, Lucas teve seu primeiro dia de aula na faculdade de relações internacionais. Quer ser diplomata e viajar pelo mundo. “É uma profissão na qual serei útil e que também me oferecerá a segurança e os benefícios dos quais preciso”, afirma, com maturidade. Ele também pretende escrever um livro sobre a própria vida, para incentivar que as famílias de crianças com deficiência não desistam de seus filhos.
Quando a família não acredita, não há como dar certo, porque tudo joga contra. É preciso muita persistência para inserir uma criança com deficiência na sociedade
Cristiane Victório
“A menina que dá trabalho”
O medo de que a filha sofresse bullying ou outros tipos de abuso não impediu que a advogada Adriana Monteiro procurasse uma escola adequada para Ana Luísa, que tem Síndrome de Angelman, uma alteração genética. Dos 4 aos 7 anos, ela estudou em um colégio comum. A mãe pagava a mensalidade em dobro, exigida pela escola para aceitar a menina. Ainda assim, o atendimento não era satisfatório.
Eles deixavam a Ana no parquinho o tempo todo, como se ela não pudesse aprender. Ela nunca estava em sala de aula. A escola reflete a sociedade preconceituosa
Adriana Monteiro, advogada e mãe de Ana
Aos 15 anos, a adolescente nunca experimentou a inclusão. Por conta da deficiência intelectual somada ao autismo, Ana não fala e precisa de ajuda para tudo. “Rodei a cidade toda e somente uma escola aceitou a minha filha. Apesar da boa vontade, não tinha capacitação”, diz Adriana.
Hoje, está matriculada em uma escola especial. Só ela e mais uma menina formam a turma. “Para toda criança, o ideal é a escola inclusiva, mas não existe nenhuma nesses moldes hoje, em Brasília, que atenda as necessidades da Ana Luisa”, constata a mãe.
A sociedade isola as pessoas com deficiência. Ao privar Ana Luisa de uma educação inclusiva, o sistema também restringe seu circulo social. “Ela não tem amigos, não recebe convites para festinhas. Isso reduz a vida social da família inteira. Algumas pessoas se referem à Ana como “a menina que dá trabalho”. Toda pessoa tem um saber, mas nem todos estão dispostos a aprender a reconhecê-lo”, diz Adriana.
A deficiência é algo inerente ao ser humano. Você pode estar saudável hoje, atravessar a rua, sofrer um acidente e se tornar uma pessoa com deficiência. Falta esse olhar à sociedade
Adriana Monteiro
Como advogada e mãe, Adriana, que é presidente da Comissão de Direitos da Pessoa com Autismo da OAB/DF, acompanhou a aprovação da nova Lei Brasileira de Inclusão. “Esperamos que exista uma mudança real, uma nova perspectiva de inclusão, porque no papel toda ideia é bonita”, ressaltou.
“A escola inclusiva é essencial para formar adultos com mais autonomia, capazes de contribuir com a sociedade. As pessoas com deficiência são tratadas como estorvo. Todo mundo precisa de amor, mas também precisa de educação, saúde e lazer”, Adriana Monteiro
Gigi quer ser modelo
Desde que Giovanna nasceu, há 6 anos, a mãe Cleo Bóhn preocupa-se em garantir à filha, que tem Síndrome de Down, acesso aos espaços da sociedade. “Quero que ela possa escolher entre ser artista, professora, modelo, esportista”, planeja a mãe. Para isso, é preciso ter acesso à educação. Algo que muitas vezes foi negado à menina, tanto na rede pública quanto na particular.
“Os colégios afirmam não estar preparados para recebê-la. Eu também não estava, quando ela nasceu, mas tive de me adaptar. Bati na porta de várias escolas e cansei de voltar chorando para casa”, Cleo Bóhn.
Este ano, Giovanna começou em uma nova escola particular, em classe inclusiva. Está semialfabetizada e já consegue escrever algumas palavras. Faz diversos acompanhamentos, como musicalização e equoterapia, além de tratamento com terapeutas ocupacionais, para garantir seu desenvolvimento. Tudo é custeado pela família.
Giovanna participa do programa Fashion Inclusivo, que reúne modelos com deficiência. Cleo Bóhn enviou à Câmara Legislativa um projeto de lei que inclua pessoas com deficiência em propagandas de órgãos da administração pública. “Ainda quero ver a Gigi em propagandas de pós-graduação, para romper com o preconceito de que pessoas como ela são incapazes”, afirma.
Um longo caminho pela frente
O atendimento de crianças e jovens nas classes inclusivas (que têm pessoas com e sem deficiência) passou a ser uma orientação legal em 2008. Baseada em dados do IBGE e do Inep, além de entrevistas e pesquisas próprias, a tese de mestrado de Patricia Augusta Ferreira Vilas Boas, da UnB, dedica-se ao ensino inclusivo no DF. Aponta que, nos últimos 8 anos, o crescimento percentual de matrículas inclusivas no Brasil foi 13, 87% maior que o crescimento do DF.
“A Região Centro-Oeste foi a que registrou o menor percentual de crescimento de matrículas inclusivas no país. No DF, apesar do crescimento ser inferior à média nacional, o número de matrículas foi 11,1% maior que a média registrada na Região Centro-Oeste”, afirma a tese de Patricia.
Cerca de 45,6 milhões de pessoas, 23,9% da população brasileira, declararam ter alguma deficiência, durante o mais recente Censo do IBGE (2010). A mesma pesquisa apontou a existência de diferenças significativas entre as taxas de escolaridade das pessoas com deficiência e as sem deficiência.
Na faixa etária de 15 anos ou mais, 38,2% da população sem deficiência não possuía instrução ou tinha apenas o ensino fundamental incompleto, mas esse percentual eleva-se para 61,1% no caso dos com deficiência.
A pesquisadora Patricia Augusta Ferreira Vilas Boas descobriu que, apesar do esforço dos professores, que fazem muito com pouco recurso, a inclusão, na capital do Brasil, só existe no papel. No tocante às matrículas inclusivas, atualmente 94% estão na rede pública, e a rede privada acolhe apenas 6% dos alunos com deficiência.
A pesquisadora ressalta que, apesar de avanços, o DF é a unidade da federação do Centro-Oeste que mais tem estabelecimentos com atendimento exclusivamente especializados (que não são classes inclusivas): 162. “Que é muito próximo, diga-se, do somatório de todas as demais unidades da região: 168 estabelecimentos.”
A qualidade da inclusão é o que preocupa a especialista. Ela entrevistou 93 professores da rede pública para entender problemas e sugerir caminhos. O estudo mostra que 35% dos que responderam já haviam participado de curso cuja temática principal era a educação especial e inclusiva.
Entre os entrevistados, 38% se declaram professores de Salas de Recurso (onde os alunos com deficiência aprendem no contraturno, geralmente, e recebem estimulação). Dos professores ouvidos, 29% afirmaram não se sentir preparados para atuar na sala de recurso e 50% afirmaram estar “parcialmente preparados”. Eles sentem falta de ações do governo para capacitação e de mais condições de trabalho.
A maioria dos participantes da pesquisa declarou que as condições de acessibilidade dos seus respectivos locais de trabalho são inexistentes ou apenas parciais, o que indica a presença de barreiras à inclusão escolar de estudantes com deficiência no DF. 23% avaliam que a atual política de educação especial é ruim, e 77% avaliam que ela é de razoável a boa. A pesquisa completa pode ser acessada aqui.
Serviço
O Movimento Down elaborou uma cartilha para orientar os pais de pessoas com deficiências sobre seus direitos sobre educação. Acesse aqui.