Venda de precatórios movimenta o “mercado de dívidas” no DF
Pessoas com crédito a receber do Estado têm vendido papéis com deságio a empresas. Medida é forma de reduzir a espera por pagamento
atualizado
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Receber dinheiro de precatórios é complexo e pode demandar tempo. Não à toa, existe todo um meio de advogados e fundos de investimento que comercializam esses títulos e movimentam cifras milionárias, aproveitando a necessidade de quem não quer esperar a administração pública quitar as pendências. Desde que o Governo do Distrito Federal (GDF) anunciou, em maio deste ano, esforços para reduzir o passivo que somava R$ 3,9 bilhões no início de 2019 para cerca de 8 mil pessoas – o equivalente a quase 10% do orçamento do DF para o ano –, o mercado local se alvoroçou.
Naquele mês, a Coordenadoria de Conciliação de Precatórios (Coorpre), do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), promoveu um mutirão de pagamentos dessas dívidas por meio de acordos diretos. A modalidade foi intermediada pela Procuradoria-Geral do Distrito Federal (PGDF), e 1.159 pessoas receberam ofertas para negociar seus precatórios com deságio de 40%. Ao todo, foram reservados R$ 30,5 milhões pelo Executivo neste ano.
Esse cenário cria um contexto de multiplicação de fundos de investimentos, advogados e instituições financeiras atrás de negociar esses títulos. Os principais bancos já têm fundos específicos sobre o tema. Consultores jurídicos ouvidos pela reportagem disseram que a concorrência mais do que triplicou nos últimos cinco anos, totalizando pelo menos uma centena de opções para o dono de um título fazer negócio apenas no DF, fora as firmas de outros estados.
Isso se deve à facilidade de entrada no meio. Qualquer um pode adquirir um título e negociá-lo, sem a necessidade de CNPJ, sendo suficiente chancelar a transferência em cartório. Os valores de deságio costumam variar se o dinheiro a ser recebido está livre de impostos, como no caso de indenizações, e conforme a antiguidade do credor e da dívida.
Em movimento
Apesar do aceno, os atrasos de décadas pelo recebimento dos títulos do GDF ainda geram um fator de inibição. O Metrópoles mostrou que o tempo de espera para ser contemplado em Brasília é de até 17 anos. Em 2016, quando a reportagem recebeu a denúncia de uma servidora aposentada que esperava por R$ 500 mil em dívidas, o governo começava a liberar o lote de 1999.
Três anos depois, pouco mudou, e o lote agora é o de 2002. Julival Ribeiro, ex-diretor do Hospital de Base, é um dos credores sem esperanças. Ele teve o nome inserido na lista do acordão do GDF, em maio, mas recusou a oferta. “Não quis nem terminar de ouvir o que era. Não vi vantagem alguma. Deságio de 40% e ainda tenho de pagar honorários dos advogados? Não compensaria.”
O valor devido a ele é considerado pequeno, cerca de R$ 20 mil. “O problema é que pago todos os meus impostos em dia. Mas, na hora de receber, o cidadão não é valorizado”, desabafa.
“É aquela coisa. Se for ficar esperando para decidirem me pagar, eu já não vou ter idade ou nem sei se vou estar aqui”, reclama também o ginecologista, obstetra e vice-presidente do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal (SindMédico-DF), Carlos Fernando da Silva. Desde 2015, ele tem precatórios a receber, mas não alimenta esperança de algum dia ver o dinheiro, cerca de R$ 50 mil.
O sindicalista critica a morosidade do governo em arcar com suas dívidas e duvida das promessas feitas de tentar zerar o passivo. Ele afirma que, se encontrar alguma oferta vantajosa para se livrar do título, pretende aderir. “É dinheiro agora contra dinheiro sei lá quando”, justifica.
Mercado de expectativa
É justamente essa desilusão que movimenta o mercado. Não é possível falar em números exatos, pois existem precatórios estaduais e federais trocando de titularidade a todo momento, com calendários de pagamento distintos. O que se sabe é o montante de dinheiro à disposição.
Somente os governos estaduais e distrital devem, somando-se suas dívidas, cerca de R$ 77 bilhões, conforme atualização no primeiro semestre de 2019 pelo Tesouro Nacional.
Todo esse montante será pago, apenas não é possível precisar quando. “Por isso, às vezes ouvimos casos de gente que vende tudo para entrar no mercado dos precatórios”, conta a advogada especialista no assunto Érika Dutra, da Alcoforado Associados.
“Entre 1998 e meados de 2010, a dívida do governo local só foi acumulando, porque houve pouquíssimos pagamentos nesse sentido. Temos um processo em nossas mãos que começou em 2002 e ainda está aí. A situação foi se normalizando a partir de 2011 e, agora, está andando”, ressalta Érika.
Fórum do Guará
O TJDFT calcula que o movimento no Fórum do Guará, na QE 25, único no Distrito Federal que resolve questões sobre o tema, aumentou 35% após o início dos acordos de maio – e o meio pode estar ainda mais agitado, já que só precisa comparecer ao local quem é intimado para tal.
Com a promoção de acordos, a exemplo dos feitos em maio, e a possibilidade de usar esses títulos para abater dívidas tributárias, o Poder Executivo do DF estima reduzir o valor devido em 32% até 2024, passando a ter de arcar com R$ 2,6 bilhões até o fim do prazo previsto por meio de emenda constitucional. Esse dinheiro liquidado é no que os investidores ficam de olho.
Segundo Érika Dutra, o burburinho está diretamente relacionado aos acenos do governo. “As pessoas se movimentaram este ano. Muita gente desconhecia esse mercado, mas, com a divulgação dos acordos do governo, houve um aumento na procura”, afirma.
O escritório em que ela presta serviço é um bom exemplo. De acordo com a advogada, dos cerca de 100 processos de precatórios acompanhados pela firma no começo do ano, restaram pouco mais de 20 neste mês, e outros estão para sair.
“A vantagem para um comprador é que, embora haja uma incerteza do tempo de pagamento, uma hora vai ser pago. Quando se entra na análise de comprar com deságio de 70%, você na verdade paga 30% do valor, e isso pode ser vantajoso”, conta a advogada.
Viabilidade
Advogada também especializada em precatórios, Camila Mercadante Santana trabalha em Salvador (BA) e tem clientes do Distrito Federal. A defensora notou movimentação maior neste ano. “Existe, no DF, uma procura grande de clientes para tentar receber alguma coisa.”
Camila orienta que o interessado nesse tipo de comercialização precisa sempre estar atento ao andamento do processo. “É necessário verificar se houve trânsito em julgado e se é precatório ou direito creditório, que é o passo anterior aos cálculos que transformam a ação em precatório”, ensina.
Segundo ela, há alguns anos a quantidade de clientes do Distrito Federal não era mais do que um punhado, mas chegou a atingir mais de 100, justamente por causa das liberações paulatinas para pagamento das dívidas.
Dívida do Estado
O precatório é uma dívida que o Estado tem com algum ente particular. Quando finalizado o processo e ocorrido o trânsito em julgado, o governo local precisa fazer uma previsão no orçamento do ano para inserir aquela dívida. Isso, por si só, inviabiliza o pagamento ágil desse crédito.
No âmbito nacional, os credores recebem o dinheiro por seus títulos religiosamente. Os atrasos acontecem devido a discussões judiciais, mas após transitado em julgado e uma vez inserido no orçamento, a pessoa com certeza vai receber pelo seu precatório federal.
O cronograma funciona em semestres. Se a pessoa consegue ter seu processo transitado na Justiça e incluído no Orçamento do país até o meio do ano, ela tem entre janeiro e dezembro do ano seguinte para ser contemplada com a quantia.
A maior liquidez desse tipo de título transforma o mercado federal em algo rentável e atrativo para as empresas e investidores especializados. Brasília é um foco para esse tipo de atividade por abrigar o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que cuida dos processos de precatórios referentes a 14 estados e o DF.
Títulos de Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Pará, Acre, Rondônia, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia e Minas Gerais são todos abrigados em Brasília.