Donos de mercado usaram motoboy e mulher analfabeta como “laranjas”
Uma das “testas de ferro” usada por família investigada morava no interior da Bahia e não sabia tinha sido registrada como sócia da empresa
atualizado
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Alvos de operação da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), os donos do supermercado Coisas da Roça, em Ceilândia, cadastravam “laranjas” como sócios da empresa, e até usavam falsas identidades, para se esquivarem de uma eventual responsabilização financeira e criminal pelas irregularidades fiscais cometidas.
As fraudes eram praticadas ao menos desde 2014 pelos investigados – todos da mesma família. O supermercado operava com um Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) cujo sócio formal era um “testa de ferro” e deixava de recolher os impostos devidos.
Quando a dívida tributária começou a somar milhões de reais, e o estabelecimento passou a ser fiscalizado, o CNPJ foi substituído por outro, mas de maneira fraudulenta e com sócio diferente. Depois, as práticas fiscais criminosas reiniciavam.
As apurações revelaram que, ao longo dos últimos 10 anos, a empresa mudou de CNPJ quatro vezes. Atualmente, a dívida acumulada pelos donoso do mercado chega a R$ 69,7 milhões.
Os empresários começaram a ser investigados pelo Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Decor) e pela Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Ordem Tributária (DOT) em 2022.
“Chamou a atenção que a sócia dessa empresa era ‘laranja’, uma senhora que morava no interior da Bahia, analfabeta e que não tinha noção de constar como dona do supermercado. Depois de a investigação começar, descobrimos que [a posse da empresa] tinha passado para uma terceira pessoa, um auxiliar de mecânico que mora no Distrito federal”, detalhou o delegado Gabriel Oliveira Eduardo, da Decor.
Em junho último, houve uma quarta mudança no CNPJ do mercado. “O sócio atual, formalmente falando, é motoboy do contador que presta serviços para a empresa. Ficou bem evidente que, na realidade, nunca houve mudança de proprietário na prática, só no papel. A família que fundou o mercado em 1989 permanece responsável por ele”, acrescentou.
As apurações também demonstraram que os funcionários do supermercado não conheciam os sócios formais da empresa. “Todos afirmaram nunca ter visto os ‘laranjas’ e que os verdadeiros donos eram da família alvo da operação”, ressaltou Gabriel Oliveira.
Arma ilegal e R$ 700 mil em espécie
Nesta quinta-feira (5/12), as equipes da PCDF cumpriram 11 mandados de busca e apreensão, nas regiões administrativas de Ceilândia, Taguatinga e Vicente Pires, bem como na cidade de Porto Seguro (BA).
Na residência do fundador da empresa, os policiais encontraram mais de R$ 700 mil em espécie e uma arma de fogo. O empresário, de 70 anos, acabou preso em flagrante pelo porte ilegal do item.
As buscas ocorreram em diversos imóveis do investigado e, também, nas casas dos dois filhos dele. Além disso, policiais civis estiveram no supermercado e no escritório de contabilidade que presta serviços para a empresa.
“A suspeita é de que o contador não estava só ciente dessas irregularidades, como também, provavelmente, foi quem substituiu os registros [do CNPJ]. Ele é investigado, inclusive, em outros inquéritos por crimes semelhantes”, afirmou o delegado.
Como forma de diminuir parte do prejuízo aos cofres públicos e descapitalizar o grupo criminoso, a Justiça determinou o sequestro de, aproximadamente, R$ 68 milhões dos investigados, por meio do bloqueio de 52 veículos, três embarcações e 48 imóveis, inclusive o próprio local de funcionamento do supermercado.
“Neste momento, verificamos que não se trata de um estabelecimento tão grande assim, e isso se contrapõe ao valor da dívida. Como um estabelecimento relativamente pequeno acumulou essa dívida de quase R$ 70 milhões? Pode ser que haja outros delitos ainda não descobertos, o que também é investigado na operação”, completou Gabriel Oliveira.
A investigação aponta indícios de que os envolvidos praticaram diversos crimes, entre eles sonegação fiscal, uso de documento falso, falsidade ideológica, associação criminosa e lavagem de dinheiro. As penas somadas para esses delitos podem alcançar até 29 anos de prisão.
A operação recebeu o nome de Mercado Oculto devido ao fato de o supermercado ser a fachada do esquema, com sua verdadeira propriedade sendo mantida em sigilo por meio das fraudes.