“Dói nos ossos.” Moradores de rua narram como enfrentam frio intenso
Dependentes de doações, eles contam com trabalho de ONGs para aguentarem temperaturas que estão abaixo dos 10°C
atualizado
Compartilhar notícia
A nova onda de frio que chegou, nesta semana, ao Distrito Federal atinge em cheio a população em situação de rua da capital. Essas pessoas, que dormem em barracas ou apenas enroladas em um cobertor, dependem de doações para amenizar o impacto do frio, que tem registrado temperaturas abaixo da casa dos 10°C, nas madrugadas.
No Setor Comercial Sul (SCS), Antônio José da Silva, 56 anos, sempre busca uma galeria para poder se abrigar à noite. “É um pouco mais sossegado. Fiz amizade com um vigilante, boto minhas coisas ao lado e durmo”, conta.
As últimas noites, ele diz, têm sido piores. Com a ventania, a sensação térmica cai bastante e as cobertas disponíveis nem sempre são o suficiente. “O frio forte mesmo é depois das 2h, 3h. Mas acaba que a gente acostuma um pouco”, comenta.
Como está desempregado desde o início da pandemia, Antônio precisou ir para as ruas, pois o dinheiro ficou curto. “Fico vendendo bala no ponto de ônibus durante o dia. O que eu ganho ainda é pouco para conseguir alugar um cantinho para morar, mas pelo menos estou ativo”, explica.
Lucas Alves, 22 anos, também tenta se abrigar como pode, debaixo dos prédios do centro de Brasília. O jovem veio de Goiânia em busca de uma vida melhor, e não tem barraca onde ficar. A estratégia dele consiste em colocar vários cobertores para evitar o contato direto com o chão, e depois se cobrir com os que sobram. “Muitas pessoas vêm até aqui e ajudam a gente. É dessa forma que conseguimos dormir”, diz.
À procura de emprego, ele vende água em semáforos para conseguir alguma renda, mas diz que é difícil se sustentar assim. “Eu quero prosperar, ter uma casa, uma família. Não quero ficar aqui o resto da minha vida”, destaca.
No Guará, Maria Lúcia Souza e Silva, 54 anos, diz não se recordar de ter passado tanto frio nas ruas como na última semana. “A gente até acostuma a dormir no chão depois de tanto tempo, mas com tanto frio, chega a doer nos ossos”, relata a mulher, que mora na rua há cerca de quatro anos.
ONGs tentam ajudar como podem
No próprio SCS, há várias organizações que tentam ajudar a população em situação de rua. Fundada por Henrique França, a Salve a Si, desde 2016, presta apoio a dependentes de drogas, e incentiva-os a mudarem de vida e receberem tratamento de reabilitação gratuito.
Toda quinta-feira à noite, há a entrega de marmitas e a disponibilização de cabines para que a população local possa tomar banho. Neste momento de frio, cobertores também são oferecidos. “O impacto social é tremendo. Duas horas que eles ficam aqui representam duas horas que não estão fazendo algo de ruim para si”, diz Henrique.
Nesta semana, o Metrópoles noticiou a possibilidade do fechamento da casa de acolhimento de mulheres da organização não governamental. Uma pessoa, que preferiu se manter anônima, no entanto, disponibilizou R$ 900 mil para que a Salve a Si permaneça em funcionamento. “Ele nos disse para que paguemos de volta à medida que conseguirmos. Ele não é rico, mas disponibilizou praticamente tudo o que tem para nós. É uma felicidade muito grande”, comemora.
Já o Instituto Barba na Rua, de Rogério Soares, conhecido como Barba, trabalha de maneira itinerante. Por causa do forte frio, ele se uniu ao projeto Para o Reino e, com uma kombi lotada com mais de 300 cobertores e lanches, tem feito uma grande ação, desde a última quinta-feira (29/7), a fim de garantir um pouco de calor a quem precisa.
As saídas ocorrem por volta de meia-noite. A ideia, segundo Rogério, é prestar assistência àqueles que não são atendidos por outros projetos. “A gente passa, olha a situação da pessoa e aborda. A nossa entrega tem que ocorrer com responsabilidade, pois são várias pessoas que doam dinheiro por acreditarem no nosso trabalho. Então, se a gente vê alguém em cima de um papelão ou com um cobertor só, a gente para e ajuda”, conta.
A comida fica por parte do pastor Jônatas Duarte. Com um chocolate quente e um pão com carne moída, ele tenta fornecer comida diferente neste momento de baixa temperatura. “O frio pede um chocolate para esquentar. Como uma marmita com arroz e feijão não combina, a gente prepara uma coisa diferente para o pessoal comer”, detalha.
As madrugadas de quinta (29/7) e sexta-feira (30/7) foram congelantes no DF. Conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a temperatura mais baixa foi registrada no Gama, com 7°C. Águas Emendadas foi o segundo local mais frio, com 7,6°C.
No Plano Piloto e no Paranoá, a menor temperatura nesses dois dias ficou em 8,8°C.
A expectativa, segundo a meteorologista Andrea Ramos, é que até segunda-feira (2/8) esta frente fria continue no DF. “A previsão é de que os termômetros, nas madrugadas, registrem entre 6°C e 8°C e, só a partir de terça, voltem a indicar um aumento gradativo. Já é a terceira vez, só em 2021, que passamos por baixas temperaturas assim”, comenta.
Sedes tem projeto de acolhimento
A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) também tem feito um trabalho intenso para minimizar o frio de moradores de rua durante o inverno. Um dos projetos consistiu na abertura de 68 vagas em dois abrigos: o Alojamento Provisório do Estádio Maria de Lourdes Abadia (Abadião), em Ceilândia, e o Serviço de Acolhimento Institucional para Adultos e Famílias do Areal (Saifa), em Águas Claras.
Implementada na quinta-feira (29/7), a medida emergencial vai durar até o início da próxima semana, e poderá ser ampliada se o frio continuar intenso nos dias que seguem. “Precisamos agir rapidamente, pois a temperatura está baixando mais a cada madrugada”, destaca a secretária Mayara Noronha Rocha.
Ao todo, o DF conta com mais de 40 unidades de acolhimento, entre abrigos, alojamentos, casas de passagem e repúblicas para todos os grupos geracionais. São 28 equipes em escalas de plantão, diariamente, inclusive com equipes exclusivas para crianças e adolescentes, e público LGBTQIA+.
Quem encontrar pessoas em situação de rua passando frio no Distrito Federal pode acionar a Sedes pelos seguintes telefones: (61) 3322-1441, (61) 3773-7566, (61) 3773-7606 (plantão) e (61) 99450-5090.
Apesar do frio, a pasta distrital pontua que não houve aumento de demanda por acolhimento na central de vagas da secretaria.